O Bem-aventurado Antônio-Frederico Ozanam, conhecido por sua caridade incansável, suas virtudes exemplares e por ser o principal fundador da Sociedade de São Vicente de Paulo (SSVP), também deixou um legado de profunda reflexão espiritual sobre o sofrimento humano. Uma de suas principais obras nesse campo, embora ainda desconhecida por muitos vicentinos e católicos em geral, é o “Livro dos Enfermos”.

Dando sequência à série de artigos que estou elaborando sobre as obras literárias de Ozanam, tenho a alegria que publicar, neste momento, uma síntese sobre o “Livro dos Enfermos”, que na verdade foi uma publicação póstuma, viabilizada pela viúva Amélia Soulacroix Ozanam em 1854. Nos artigos anteriores aqui no site Famvin, já escrevi sobre “Os Poetas Franciscanos da Itália do Século XIII“, “As Origens do Socialismo” e “Uma peregrinação ao País de El Cid”, todos disponíveis aqui mesmo no site da Famvin.

Para elaborar essa síntese, tive acesso a dois exemplares do “Livro dos Enfermos”. O primeiro, com 202 páginas, consiste na terceira edição impressa em francês (“Le Livre des Malades”). Essa edição é considerada comemorativa, pois foi lançada em 1913, ano do centenário de nascimento de Ozanam (as anteriores foram em 1854 e 1860). Nela, encontramos o belo prefácio escrito pelo abade Auguste Corbierre. Já o segundo exemplar (“The Book of the Sick”), com 136 páginas, foi publicado em inglês em 2013, por ocasião do bicentenário de Ozanam, e consiste na quinta edição comemorativa neste idioma, cujas anteriores foram em 1868, 1901, 1907 e 2006.

Estrutura do livro

O “Livro dos Enfermos” está estruturado em quatro partes. Na primeira, intitulada “Os fundamentos da fé e da esperança”, chama a atenção do leitor o texto “As origens da dor e da morte”, com foco em Jesus ressuscitado. A segunda parte abrange “As enfermidades no Antigo Testamento”, com base nas curas de Jó, Naamã, Ezequiel e Tobias. A terceira parte do livro, com o título “Conselhos, sentimentos e orações” foca nos Salmos de Davi e nos livros de Eclesiástico (Sirac) e Isaías. Por fim, a quarta parte tem como título “As enfermidades e o Novo Testamento”, em que são mencionados alguns casos de curas milagrosas realizadas por Nosso Senhor Jesus Cristo nos quatro Evangelhos e nos Atos dos Apóstolos.

Antes desses quatro capítulos, o livro contém também os artigos “Pensamentos de Ozanam” e “Orações escritas por Ozanam”, algumas delas em latim. Na versão em inglês, há ainda um testemunho inédito escrito pela própria Amélia Soulacroix, além de um anexo contendo detalhes do primeiro milagre atribuído ao Bem-aventurado Ozanam (ocorrido no Brasil em 1926) e referências papais sobre a questão da doença.

Conteúdo da publicação

O livro é uma coleção de reflexões e orações que Ozanam escreveu enquanto lutava contra as dores de sua enfermidade, oferecendo um testemunho poderoso de sua fé inabalável. Ozanam via a doença como um meio de se unir ao sofrimento de Cristo, entendendo que o sofrimento humano tem um papel redentor. Dividido em seções que combinam suas experiências pessoais com orações dirigidas a Deus, o livro não é apenas um relato de suas dificuldades, mas uma profunda reflexão sobre o sentido do sofrimento e sua relação com a espiritualidade cristã e vicentina.

Todo o livro é um presente de Deus. Uma das passagens mais significativas tem como tema “Não temer a morte”, escrita com base em Eclesiástico 41, 1-6. Mais do que um diário, o livro é um testemunho da força espiritual de Ozanam, que enfrentou com serenidade e fé os desafios de uma saúde fragilizada durante grande parte da vida dele. Antônio-Frederico Ozanam acreditava que suportar a dor com paciência e fé era uma forma de purificação e de serviço a Deus. Esse olhar transcendental é expresso em suas palavras, que trazem consolo a todos os que enfrentam situações de fragilidade física e emocional.

O livro é organizado de forma a revelar as meditações de Ozanam enquanto lutava contra suas enfermidades. A obra não apenas relata os sofrimentos físicos, mas também traz à tona uma dimensão espiritual mais profunda. Ozanam via a dor como um meio de se aproximar de Deus e um caminho para o crescimento espiritual. Ele enxergava o sofrimento como uma oportunidade de união com Cristo e acreditava que, por meio dele, poderia viver mais intensamente os ensinamentos do Evangelho. Essa perspectiva de enxergar a doença sob um prisma espiritual é um dos pilares dessa obra.

A publicação oferece não apenas o relato das próprias dores e sofrimentos de Ozanam, mas também conselhos e palavras de encorajamento para outras personas que também vivem em tribulação. Ozanam compartilha suas orações, seus momentos de meditação e suas interações com os familiares e amigos que o apoiavam durante sua enfermidade. O livro reflete uma espiritualidade madura, que vê a vida como uma jornada, onde a dor e o sofrimento não são vistos como punições, mas como parte do caminho para a santificação.

Conclusão

O “Livro dos Enfermos” se tornou um farol de esperança e inspiração para todos os que, como Ozanam, encontram na fé uma força renovadora. A publicação é uma leitura essencial para aqueles que buscam entender como a caridade, a fé e a dor podem coexistir, e como, na visão de Antônio-Frederico Ozanam, elas podem até se fortalecer mutuamente.

Ozanam, até os últimos dias nesta terra, mostrou que a verdadeira força do cristão está na capacidade de transformar a dor em amor, e é isso que faz dessa obra um tesouro espiritual para a Igreja, para a Família Vicentina e para a Sociedade de São Vicente de Paulo. Para nós, vicentinos, o livro é uma fonte de inspiração e de aprendizado, mostrando como a fé pode transformar a dor em um ato de amor.

Renato Lima de Oliveira
16º Presidente-geral da SSVP (2016/2023) e atualmente Comissário-geral nas Nações Unidas.