São Vicente de Paulo e a atualidade de sua herança espiritual

por | maio 28, 2022 | Formação | 0 Comentários

Se quisermos traduzir em linguagem atual os traços mais marcantes do perfil de São Vicente de Paulo poderíamos recorrer a três elementos que definem sua personalidade: seu coração inquieto, sua paixão por Jesus Cristo e sua dedicação aos pobres. Vicente de Paulo viveu na virada dos séculos XVI e XVII, em uma época de instabilidades e transformações tanto na sociedade quanto na Igreja, um tempo de conflitos políticos e religiosos, de crescimento da miséria e de intentos reformistas. Desde cedo, revelou-se um jovem irrequieto, desejoso de descobrir o sentido mais profundo de sua existência e dos acontecimentos da história. Deixou seu núcleo familiar para estudar e, assim, demarcar seu espaço e construir seu futuro. Decidiu-se pela promissora carreira sacerdotal. Com o correr do tempo, enfrentando desenganos e desventuras, deu-se conta de que o sacerdócio não podia reduzir-se a um mesquinho meio de vida. Por trás de sua escolha, havia um chamado, uma iniciativa que não era sua, um apelo que o interpelava desde o mais íntimo, convidando-o a mudar de perspectiva e a assumir sua vocação como uma generosa entrega de vida. Continuou buscando o caminho pelo qual poderia responder a esse chamado. Deixando-se orientar por homens de elevada estatura espiritual e sólida fibra moral, começa a descobrir que não poderia viver com sentido, esperança e tenacidade a não ser centrando toda sua existência em Jesus Cristo, encontrando na humanidade do Filho de Deus o referencial seguro e a inspiração permanente de sua própria humanidade. Intui, então, que isso equivalia a não ceder à tentação de viver para si, dando voltas ao redor de seus interesses e conveniências.

Cativado por Cristo, Vicente se redescobre profundamente amado por Deus, cuja vontade procurará conhecer e realizar em seu dia a dia, em uma atitude de confiança e disponibilidade. Seu percurso existencial comprova o que afirmou o Papa Francisco: “Quando estamos diante de opções e contradições, perguntar-nos qual é a vontade de Deus ajuda a abrir-nos a possibilidades inesperadas” (Soñemos juntos, p. 22). E assim é. Ao mesmo tempo, o ainda jovem Padre Vicente desperta para o sofrimento e o abandono dos mais pobres, cuja dignidade não medirá esforços para defender e promover, saindo ao passo das mais variadas e gritantes indigências de seu tempo, movido por aquela caridade compassiva e ativa que contemplava em sua meditação da vida e da missão de Jesus Cristo, enviado pelo Pai para evangelizar os pobres (cf. Lc 4,18). Com efeito, essa é a faceta do mistério da encarnação do Filho de Deus que passará a ser o âmago do itinerário de Vicente de Paulo.

É interessante notar como, na trajetória de São Vicente, os três elementos acima mencionados se fundem no dinamismo de uma mesma experiência espiritual: sua busca inquieta o leva a amadurecer como homem, a firmar-se como seguidor convicto e apaixonado de Jesus Cristo e a dedicar-se com generosidade e criatividade crescentes aos menores dos irmãos (cf. Mt 25,40). E tudo isso, em processo constante de aprimoramento humano, espiritual e missionário, sem jamais separar essas três dimensões. No ocaso de sua fecunda existência, poderá dizer a seus Padres e Irmãos: “Em que consiste nossa perfeição? Em fazer bem todas as ações: 1º como homens dotados de razão, em conviver bem com o próximo e lhe garantir a justiça; 2º como cristãos, em praticar as virtudes de que Nosso Senhor nos deu exemplo; 3º como missionários, em realizar bem as obras que ele fez, e no mesmo espírito, enquanto nos permitir nossa fraqueza, bem conhecida por Deus” (SV XII, 77-78).

Nas palavras de Vicente de Paulo, vemos, portanto, o espelho de sua vida, do homem íntegro e bom, do cristão identificado com seu Mestre e Senhor, do missionário consistente, ardoroso e entusiasta que ele foi. Acrisolado por suas vivências, deixando-se alcançar por Jesus Cristo, Vicente se une ao Deus que o escolheu para sinalizar a força invencível de sua predileção pelos pobres, abrasado por um amor que se manifesta mais em obras do que em palavras, avançando sempre mais na direção da meta (cf. Fl 3,12-14). Certa vez, recordou a um amigo: “No caminho de Deus, não avançar é retroceder, já que o homem não pode permanecer sempre no mesmo estado e os que foram chamados devem prosseguir de virtude em virtude” (SV II, 129). Seu processo de conversão contínua o demonstrar com maestria. Assim, São Vicente se nos afigura como um protótipo do que o ser humano pode chegar a ser quando, seguindo sua vocação, mergulha no mistério de Deus, sem jamais fechar os olhos para a realidade que o circunda.

O itinerário percorrido por Vicente de Paulo recorda-nos aquilo que o Papa Francisco escreveu especialmente aos jovens: “É possível passar a própria juventude distraído, flutuando à superfície da vida, dormindo, incapaz de cultivar relações profundas e entrar no coração da vida; deste modo, porém, prepara-se um futuro pobre, sem substância. Ou, pelo contrário, pode-se gastar a juventude cultivando coisas nobres e grandes e, assim, preparar um futuro cheio de vida e riqueza interior” (Christus vivit, n. 19).

De fato, quanto mais profundos somos na assimilação dos ideais, valores e atitudes que enobrecem nosso viver, quanto mais buscamos o que é verdadeiro, bom e belo, mais nos humanizamos, mais qualificamos nossas intenções, relações e ações. E, quanto mais nos enraizamos na fé, quanto mais centramos nossa existência em Jesus Cristo, vivendo para Deus e para os outros, mais nos sentimos impulsionados a encarnar o amor em toda sua riqueza e extensão, produzindo frutos abundantes na prática da compaixão e do cuidado, na atenção aos que mais sofrem e necessitam de proximidade e de ajuda, na construção de um mundo mais fraterno e solidário, anunciando o Evangelho com a vida e contrapondo-nos a tudo o que lhe é contrário. O momento atual – de crise e corrupção, de pandemia e indiferença, de solidão e desolação, de dor e morte, de negação das evidências e banalização do inaceitável, de necropolítica e desmonte da democracia, de recrudescimento da pobreza e depredação da Casa Comum – constitui-se numa hora propícia para pôr em marcha o que significa ser humano, ser cristão e ser missionário à luz do exemplo de São Vicente de Paulo.

Não há a menor dúvida de que São Vicente de Paulo foi um homem de intensa e extensa atividade. Suas ações, empreendidas com discernimento e determinação, tiveram um largo alcance eclesial e social naquele contexto convulsivo da França do século XVII. Não houve drama, sofrimento ou carência que não tenha reverberado em seu coração iluminado pela fé e abrasado pela caridade. É certo, ademais, que o santo da caridade e da missão não realizou nada sozinho. Não se vê em sua conduta nenhuma sombra de autoprojeção egocêntrica ou de heroísmo narcísico. Não era partidário do “complexo adamita” (de Adão), aquele de quem pensa que tudo começa em si. Importava-lhe tão somente evangelizar e servir, no fiel seguimento de Jesus Cristo, tendo diante dos olhos as indigências e padecimentos humanos que se lhe apareciam cada vez mais contundentes. Para sair ao encontro dessas realidades, convoca outras pessoas atraídas pelo mesmo ideal. A partir de 1617, constitui as Confrarias da Caridade, reunindo mulheres e homens. Oito anos depois, em 1625, concebe a Congregação da Missão, formada por Padres e Irmãos. Mais tarde, no ano de 1633, juntamente com a grande mulher que foi Santa Luisa de Marillac, funda a Companhia das Filhas da Caridade. O traço de união entre suas fundações era precisamente uma experiência de fé que se desdobrava no zelo evangelizador e na gratuidade do serviço aos mais necessitados, sofridos e esquecidos.

Em estreita colaboração com aqueles que o Senhor acrescentava às fileiras da Caridade e da Missão, Vicente de Paulo colocou em marcha inúmeras iniciativas e compromissos, dos quais citamos apenas alguns: as missões nos povoados rurais, o cuidado dos enfermos nos hospitais e em seus domicílios, a atenção aos refugiados e às vítimas das guerras, o socorro às regiões depauperadas, a presença junto aos presos, o amparo às crianças abandonadas, a fundação de pequenas escolas, etc. Em todas as ações a favor dos menos favorecidos, Padre Vicente e seus companheiros procuravam atender ao ser humano em sua totalidade, com o intuito de sanar suas carências corporais e espirituais. Assim, alicerçados na fé que opera pela caridade (cf. Gal 5,6), visibilizavam em seus gestos a mensagem de vida e salvação que transmitiam ao anunciar o amor de Deus, a fim de “tornar efetivo o Evangelho” (SV XII, 84).

Além disso, com a ajuda de seus Coirmãos, Vicente se ocupou denodadamente da formação do clero, contribuindo para dotar a Igreja de pastores santos, sábios e solícitos. O raio de sua atuação se expandiu quando de sua nomeação para o Conselho de Consciência da rainha, a partir do qual lhe foi dado intervir de muitas formas para socorrer os empobrecidos, pacificar conflitos sociais e revitalizar a Igreja em seu empenho reformador. Como se não bastasse todas essas atividades de ampla incidência, trabalhou tenazmente para consolidar suas Comunidades, orientando seus membros, dando-lhes conferências e escrevendo-lhes regras e regulamentos de notável solidez e relevância prática. Ao longo de sua existência, as Confrarias se multiplicaram rapidamente por todo o território da França, a Congregação da Missão se estabeleceu em vários países (4 europeus e 3 africanos) e as Filhas da Caridade abriram numerosas casas no território francês, chegando depois à Polônia. Vicente de Paulo também acompanhou de perto o florescimento de outras Comunidades e Associações, além de ocupar-se da direção espiritual de muitas pessoas e de manter uma vasta correspondência com distintos personagens. Em tudo o que fazia, importava-lhe, acima de tudo, “correr ao encontro das necessidades do próximo como se fosse apagar um incêndio” (SV XII, 31).

Seria impossível descrever em poucas páginas todas as realizações de São Vicente e contabilizar suas atividades e empreendimentos nos campos da evangelização, do serviço caritativo, da promoção humana, da transformação social, da reforma institucional da Igreja, da formação do clero, do protagonismo dos leigos, da valorização da mulher, etc. Por tudo isso e muito mais, não é difícil constatar que poucos santos foram tão ativos e produtivos, fecundos e laboriosos como Vicente de Paulo. E, até hoje, mais de 400 anos depois, suas obras continuam beneficiando a uma multidão de pessoas e congregando um incalculável número de membros e cooperadores.

A semente germinou e cresceu, sem que São Vicente pudesse calcular e prever a abundância de seus frutos; e tornou-se uma árvore frondosa, capaz de oferecer alívio e frescor a quantos se abrigam à sua sombra (cf. Mc 4,30-32). Desse modo, sua vida se converteu em uma nova parábola do Reino narrada para os pequenos e pobres, para os sedentos de Deus e famintos de pão. Com razão e entusiasmo, poderá resumir assim a vocação que partilha com seus Missionários: “Um grande motivo que temos para ser fieis é a grandeza de nossa missão: fazer Deus conhecido aos pobres, anunciar-lhes Jesus Cristo, dizer-lhes que o Reino está próximo e que ele é para os pobres. Oh! Como isso é sublime!” (SV XII, 80).

Neste ponto, como em tantos outros, o Papa Francisco (um homem de coração vicentino!) tem nos ajudado a voltar ao eixo do Evangelho, particularmente agora, tendo diante dos olhos as nefastas consequências da crise que se abateu sobre o mundo e, ainda mais fortemente, sobre os que não dispõem do mínimo requerido por uma vida digna e feliz. Em seu livro Vamos sonhar juntos, o Pontífice sublinha:“Quando a Igreja fala da opção preferencial pelos pobres, quer dizer que sempre é preciso ter em conta o impacto das decisões que tomamos sobre os pobres. Mas também significa que devemos pôr o pobre no centro de nosso modo de pensar. Por meio desta opção preferencial, o Senhor nos presenteia uma nova perspectiva de juízo e de valor sobre os acontecimentos” (p. 55). E, dando um passo a mais, convoca-nos à cultura da solidariedade, que, recebendo da fé seu mais forte incentivo, se assenta sobre o reconhecimento da dignidade humana e não se restringe a medidas emergenciais: “A solidariedade não é partilhar as migalhas da mesa, mas sim garantir lugar para todos (…). O problema não está em dar de comer ao pobre, vestir o nu, acompanhar o doente, mas sim em considerar que o pobre, o nu, o doente, o preso, o desterrado têm dignidade para sentar-se às nossas mesas, sentir-se em casa entre nós, sentir-se família” (p. 115). E conclui: “Quando se põe a dignidade das pessoas no centro, cria-se uma nova lógica de misericórdia e cuidado” (p. 122). Na mesma linha, situa-se a obra caritativa e missionária de São Vicente de Paulo.

Esta pergunta é decisiva para compreender adequadamente a pessoa de São Vicente de Paulo. Eram tão impressionantes seu vigor caritativo e sua entrega missionária que, facilmente, podemos esquecer-nos da fonte secreta que irrigava suas ações. Além disso, a forte influência exercida por ele nas mais distintas esferas da sociedade e da Igreja de seu tempo poderia levar a confundi-lo com um filantropo ou a reduzi-lo à condição de um ativista. Sem desmerecer em nada a relevância social de seu empenho e o alcance de sua colossal atividade apostólica, precisamos reconhecer e afirmar que Vicente de Paulo era, antes de qualquer outra coisa, um místico, isto é, alguém cuja existência se mantinha enraizada no mistério do amor do Pai, amor revelado em Jesus Cristo e atualizado pelo Espírito Santo. Era dessa fonte transbordante e cristalina que o santo da caridade missionária colhia a seiva capaz de nutrir e dinamizar suas ações. Sua íntima comunhão com Cristo constituía o alento criativo de tudo o que realizava, o critério e a inspiração de suas decisões e opções, o diadema que cingia suas obras, sua razão de ser e de atuar enfim. Seria radicalmente impossível compreender a vida e a missão de São Vicente sem referência à pessoa de Jesus, cujo espírito modulava seu coração e modelava sua conduta. E o mesmo se pode dizer em relação às suas fundações.

De fato, este é o cantus firmus que ressoa com total afinação em suas cartas e conferências: Cristo deve estar no centro de nossa vida para descentrar-nos de nós mesmos, para fazer-nos verdadeiramente livres, ensinando-nos a viver em total docilidade para com o Pai, confiando em sua Providência e seguindo-a passo a passo, bem como em uma disponibilidade convicta e alegre para amar e servir os irmãos, com particular atenção aos mais pobres. Não era, pois, sem motivo que Vicente de Paulo insistia que seus Missionários não poderiam corresponder às exigências de sua vocação e aos apelos da missão e da caridade se não estivessem revestidos do espírito de Jesus Cristo, isto é, profundamente imbuídos dos sentimentos e disposições do Filho de Deus, visceral e progressivamente identificados com ele. Vale a pena dar-lhe a palavra aqui:

“Para tender à própria perfeição, é necessário revestir-se do espírito de Jesus Cristo. Eis uma grande tarefa: revestir-se do espírito de Jesus Cristo! Isso quer dizer que, para aperfeiçoar-nos, para assistir utilmente os povos e para bem servir os eclesiásticos, é preciso que nos empenhemos em imitar a perfeição de Jesus Cristo e procurar alcançá-la. Isso mostra, outrossim, que, em tal matéria, nada podemos por nós mesmos. É preciso que nos enchamos e nos animemos desse espírito de Jesus Cristo (…). A Companhia sempre teve um profundo amor pelas máximas cristãs e desejou revestir-se do espírito do Evangelho, a fim de viver e agir como viveu Nosso Senhor e fazer que seu espírito transpareça em toda a Companhia, em cada Missionário e em todas as suas obras” (SV XII, 107-108). Os meios privilegiados para manter essa fina sintonia com o espírito de Cristo passam pela meditação diária do Evangelho, pela frutuosa celebração da Eucaristia, pelo encontro com os pobres, sem que nenhuma dessas mediações possa suplantar a outra.

São Vicente estava convencido de que a vocação apostólica possui uma dimensão eminentemente contemplativa. Escrevera, a propósito, a um de seus Padres: “A vida apostólica não exclui a contemplação, mas a abraça e dela se prevalece para melhor conhecer as verdades eternas que deve anunciar” (SV III, 347). Se é verdade que, sem ação, a contemplação pode evaporar-se em abstração etérea e fuga ilusória, não é menos verdade que, sem contemplação, a ação corre o risco de resvalar para um ativismo compulsivo, um moralismo sem alma, uma falsa roupagem ideológica ou coisas do gênero. Já Santo Tomás de Aquino tinha afirmado que não há nada que mais contribua para a perfeição cristã do que “a junção da contemplação e da ação em uma mesma pessoa”.

Para estimular essa junção benfazeja em suas Comunidades, o incansável Vicente de Paulo não hesitava em sublinhar a importância e a necessidade de cultivar a vida interior por meio da oração. De fato, chamam a atenção não só a frequência como também a força e a familiaridade com que o santo fundador fala aos seus do espírito e da prática da oração, demonstrando tratar-se, antes de tudo, de uma convicção pessoal e de uma vivência constante. Neste ponto, Vicente coincide com os místicos e mestres espirituais que o inspiraram, tais como São Francisco de Sales, Santa Teresa de Jesus, Santo Inácio de Loyola, Pierre de Bérulle, etc.

Dentre suas numerosas alusões ao tema, podemos fixar-nos nesta que se acha em uma conferência aos Padres e Irmãos da Missão. Sua consciência sobre o valor da oração é tão incisiva quanto sua determinação em propô-la: “Demo-nos todos a esta prática da oração, pois é por ela que nos vêm todos os bens. Se perseveramos em nossa vocação, é graças à oração; se vamos bem em nossos trabalhos, é graças à oração; se não caímos no pecado, é graças à oração; se permanecemos na caridade, se nos salvamos, tudo isso é graças a Deus e à oração” (SV XI, 407). Ou ainda esta definição compartilhada com as Filhas da Caridade: “A oração é tão excelente que nunca se reza demais e, quanto mais rezamos, mais queremos rezar, quando na oração buscamos sinceramente a Deus” (SV IX, 417). Seguramente, São Vicente coincidiria com o que disse recentemente o Papa Francisco, ao ordenar novos presbíteros: “Um sacerdote que não reza apaga lentamente o fogo interior do Espírito” (25 de abril de 2021).

Demos um passo adiante… Graças à impostação mística de sua ação, São Vicente frisava que o serviço da caridade e o anúncio do Evangelho deveriam ser emoldurados e enriquecidos pela prática das virtudes, virtudes que reluziam na conduta de Jesus Cristo, especialmente aquelas que mais se ajustam ao específico de um carisma apostólico como o que Vicente recebeu do Espírito e comunicou aos seus. No terreno fértil dessas virtudes, descansa a ética que se desprende da mística vicentina, já que é próprio de toda experiência de Deus estabelecer uma maneira de ser e de atuar que lhe corresponda. Quais são, pois, estas virtudes que humanizam os membros da Família Vicentina e os capacitam para a missão? A simplicidade, que se traduz em uma vida íntegra e em um procedimento transparente, rejeitando toda forma de dissimulação e falsidade; a humildade, que nos ensina a reconhecer nossos limites, a esperar em Deus e a contar com os outros, renunciando à autossuficiência e à soberba; a mansidão, que nos torna constantes no bem, cordiais no trato e serenos em meio às adversidades, afastando-nos da arrogância e da aspereza; a mortificação, que nos modela para a fortaleza interior, a firmeza de caráter e a persistência nos propósitos assumidos, contrapondo-se à indolência e à tibieza; e, por fim, o zelo, que nos dispõe para uma fidelidade criativa, uma entrega abnegada e um compromisso entusiasta, na direção contrária da mediocridade e da apatia.

São Vicente falava dessas cinco virtudes com particular ênfase, considerando-as como dom de Deus e responsabilidade nossa: “Ó Senhor, como isso é belo e como vos será agradável a Missão se seu espírito é de simplicidade, humildade, mansidão, mortificação e zelo! Procuremos, cada um de nós, encerrar-nos nessas cinco virtudes, como os caracóis em suas conchas, e façamos que nossas ações respirem tais virtudes. Aquele que proceder desse modo será um verdadeiro missionário” (SV XI, 310).

Este é, pois, o principal legado de São Vicente de Paulo para a Igreja e a humanidade. Não tanto o muito que ele fez, mas a maneira como o fez, o sentido de fé que o impregnava, a retidão de intenção que o movia, o amor que depositava em tudo o que lhe competia realizar por Deus e pelos irmãos, em última análise, o espírito de Jesus Cristo que o iluminava e impelia a entregar-se sem restrições, a fazer-se tudo para todos (cf. 1Cor 9,22) e a realizar bem, da melhor forma possível, o bem para o qual tinha sido chamado, porque, afinal, “não basta fazer o bem; é preciso, além disso, fazer tudo bem, no espírito de Nosso Senhor, do modo como Nosso Senhor o fez na terra, puramente para a glória de Deus” (SV XI, 468).

Só um místico, um homem verdadeiramente espiritual, um contemplativo na oração e na ação, poderia intuir tão profundamente essa verdade e vivê-la com liberdade e coerência até o fim de seus dias, ensinando-nos que “Deus pede primeiro o coração e depois as obras” (SV X, 131). Ou ainda, reproduzindo uma lição colhida da Imitação de Cristo (T. de Kempis), insistirá Vicente, segundo o registro de seu primeiro biógrafo: “Deus não se fixa tanto no exterior de nossas ações quanto no grau de amor y na pureza de intenção com que as realizamos” (Abelly III, 30-31). No mais, como lembra o poeta argentino, “lo que el árbol tiene de florido vive de lo que tiene sepultado” (F. L. Bernárdez). Sem a seiva da vida interior, não há compromisso que resista, não há caridade que possa florescer, não há missão que produza os frutos esperados. “Precisamos de vida interior, precisamos tender para ela. Se faltarmos a isso, faltaremos a tudo” (SV XII, 131).

Com efeito, se queremos contribuir para lançar as bases de um mundo justo, fraterno, pacífico e solidário, capaz de triunfar sobre a pandemia do egoísmo e da indiferença, respeitoso da dignidade humana, do bem comum e da criação, segundo o projeto de Deus, não podemos eximir-nos de uma verdadeira mística, de uma interioridade mais profunda, de uma vida espiritual intensa, de uma prática regular da oração, que nos possibilitem “descentrar-nos e transcender-nos, vencendo a tentação de viver girando ao redor de nós mesmos”, como acentua o Papa (Vamos sonhar juntos, p. 141). Sem a profundidade espiritual que aquilata nossa humanidade, nada disso será possível!

Há, evidentemente, muitas formas de entender o estilo de vida cristão que se enraíza na experiência espiritual de São Vicente de Paulo e que, por isso mesmo, denominamos espiritualidade vicentina. O núcleo em torno do qual se definem suas características essenciais não é outro senão o seguimento de Jesus Cristo, evangelizador dos pobres, com tudo o que isso abrange e requer em termos de contemplação e ação, inspiração mística e empenho ético, paixão por Deus e compaixão pelos pobres. Afinal de contas, “que amor podemos ter por Nosso Senhor se não amamos o que ele amou?” (SV XIII, 811), indagava São Vicente, dirigindo-se às suas colaboradoras leigas das Confrarias da Caridade.

No sentir de nosso fundador, sem referencia a Cristo, sem uma permanente relação com ele, sem a disposição contínua e renovada de amar aqueles a quem ele amou, não pode haver caridade e missão que sejam dignas destes nomes. E o coração de Jesus transbordava de amor ao Pai, de quem tudo recebia e cuja vontade era o alimento de sua vida e o espelho de suas ações (cf. Jo 4,34; 5,19), e aos pobres, os mais desamparados social e religiosamente, aos quais se reconhecia enviado e aos quais consolou, revigorou e promoveu com gestos, palavras e ações de incomparável misericórdia (cf. Mt 9,35s; At 10,38).

Foi assim, repleto de amor ao Pai e aos pobres, que Jesus de Nazaré encarregou seus discípulos de continuar sua obra salvadora (cf. Lc 10,1s; Mc 16,15). A espiritualidade vicentina nos implica diretamente na missão do Filho de Deus: “Sim, Nosso Senhor pede que evangelizemos os pobres. Foi o que ele fez e deseja continuar a fazer por meio de nós” (SV XII, 79), arremata Vicente, falando, desta vez, aos Missionários. A partir desse núcleo irrenunciável que é a pessoa mesma de Jesus Cristo – encontrado no Evangelho, na Eucaristia e nos pobres – vão se delineando os elementos constitutivos da identidade vicentina: a confiança na Providência, a busca e a realização da vontade de Deus, a integração entre evangelização e serviço, a vida fraterna em comunidade, as cinco virtudes que nos identificam, a vivência dos conselhos evangélicos, etc.

Assentadas as bases da espiritualidade recebida de São Vicente de Paulo, podemos falar, então, de sua relevância para os nossos dias. Esta também pode ser enfocada de várias formas, desde que se mantenha o vínculo com seu núcleo identitário, tal como afirmamos acima. Geralmente, quando se fala em espiritualidade vicentina, ressalta-se seu aspecto mais operativo, sua dimensão ativa ou prática, seu impulso para a ação. E não resta a menor dúvida de que esse aspecto é legítimo. Contudo, não é lícito isolá-lo de sua fonte, de seu manancial místico, de sua dimensão contemplativa, de seu referencial fundante. Quem o faz, parece desconsiderar o teor da experiência que São Vicente nos transmitiu, terminando por abastardar a herança que ele nos legou. Uma visão meramente funcional e voluntarista da espiritualidade vicentina equivoca-se por reducionismo, atrofia suas potencialidades e não lhe permite irradiar toda inspiração de que é portadora, como se fosse uma espiritualidade de pura imanência.

Neste caso, o máximo que poderíamos descobrir na espiritualidade vicentina seria um ideal motivador para a práxis, mas não propriamente seu substrato evangélico mais profundo, o que ela possui de mais essencial e estimulante: um caminho de configuração com Cristo, enviado pelo Pai para evangelizar os pobres; um apelo a uma autêntica experiência de Deus; uma resposta às inquietações mais profundas do coração humano; uma estrada de santidade e uma escola de caridade; um sopro místico capaz de sedimentar as virtudes e os valores que enobrecem e qualificam nosso viver, conviver e atuar; um horizonte de sentido que encoraja a travessia da existência à luz da fé; enfim, uma esperança que se espraia para além da história e nos abre ao futuro promissor da eternidade.

Em um tempo como o nosso – marcado por tantas rupturas e conflitos, fraturado por polarizações políticas, extremismos ideológicos e fundamentalismos religiosos – a relevância da espiritualidade vicentina se revela em seu equilíbrio dinâmico, em seu potencial humanizador, em sua capacidade de integrar realidades que poderiam parecer distantes ou até antagônicas, tais como: verdade e bondade, contemplação e ação, firmeza e suavidade, coerência e flexibilidade, audácia e prudência, silêncio e palavra, confiança e prontidão, discernimento e decisão, anúncio do Evangelho e cuidado da vida, espírito de fé e consciência crítica, profundidade e praticidade, realismo e esperança, humildade e magnanimidade, seriedade e bom humor, etc. Binômios que assinalam traços marcantes do perfil humano de Vicente de Paulo, que se traduziam em seu modo equilibrado de viver e atuar e que ecoavam com frequência em seus conselhos e recomendações.

Com efeito, a mais clássica filosofia legou-nos a iniludível sentença, atribuída a Aristóteles e, séculos mais tarde, habilmente tematizada por Santo Tomás: “Virtus in medio est”. São Vicente se apropriou dessa verdade, mencionando-a em diferentes ocasiões. Em uma delas, refletiu com sua Comunidade: “Meus irmãos, as virtudes consistem sempre em um justo equilíbrio. Cada uma delas tem dois extremos viciosos. De qualquer lado que nos afastemos, corremos o risco de cair no vício contrário. É preciso andar retamente entre esses dois extremos, a fim de que nossas ações sejam louváveis (…). A virtude está no meio, os extremos nada valem” (SV XI, 220). Apoiados no exemplo e na palavra de Vicente de Paulo, aprendemos que uma pessoa equilibrada é aquela que não se permite tender aos extremos, embora sabendo posicionar-se com convicção e clareza em face dos acontecimentos; é aquela que evita os excessos, sem, contudo, instalar-se na mediocridade. Trata-se, pois, da pessoa que procura discernir com sabedoria para decidir com coragem e viver com coerência, sobretudo em meio às circunstâncias mais dramáticas e adversas.

A sociedade contemporânea – incluídas também as religiões – padece de extremismos e dilaceramentos, cujos impactos afetam enormemente a saúde integral das pessoas, as relações humanas, o compromisso ético e a preservação da Casa Comum. Também a ação evangelizadora e a comunhão eclesial se vêm fortemente afetadas, às vezes seriamente prejudicadas. Levanta-se, pois, o desafio de encontrar o prumo do equilíbrio, do discernimento, da sensatez, do bom senso, da serenidade, da clarividência, do sentido de oportunidade, do respeito, do diálogo, de tal maneira que saibamos reverter as crises em oportunidades.

Os apelos que Deus nos dirige através dos fatos da história não nos podem encontrar distraídos ou sobressaltados, sob o risco de nos atrasarmos por inércia ou de nos precipitarmos por agitação nas respostas que nos competem. A vida, a atuação e a palavra de São Vicente dão testemunho disso: “Tenho uma devoção especial de seguir passo a passo a adorável Providência” (SV XII, 208). Sua “mística de olhos abertos” levava-o a estar atento aos acontecimentos, às ocorrências do cotidiano, interpretando-os à luz da fé para deixar-se surpreender por Deus e captar suas solicitações: “A vontade de Deus não pode ser melhor conhecida, senão através dos acontecimentos que chegam para nós, sem que os tenhamos pedido” (SV V, 453). Vicente de Paulo nos convida a seguir passo a passo as indicações da Providência e a colaborar com ela, sem excessos de lentidão ou de pressa, tratando de conciliar a sabedoria do discernimento, a coragem da decisão que ele suscita e a coerência de vida que ele inspira, de tal modo que nossas ações correspondam ao que Deus quer.

Diversos ensinamentos de São Vicente explicitam o equilíbrio que caracteriza a espiritualidade com que ele enriqueceu a Igreja. Valha-nos aqui a conhecida relação que estabelece entre o amor afetivo e o amor efeito, ou seja, o amor unitivo ao Senhor e o amor oblativo ao próximo necessitado, o que, não realidade, não passa de um mesmo e único amor aprendido de Jesus Cristo (cf. Mc 12,29-31; Jo 10,17).

Dirá o fundador às Filhas da Caridade: “Um coração que ama Nosso Senhor não pode suportar sua ausência e deve se unir a ele pelo amor afetivo, o qual, por sua vez, produz o amor efetivo. Porque o primeiro não basta, minhas Irmãs. É necessário ter os dois. É necessário passar do amor afetivo ao amor efetivo, que é o exercício das obras de caridade, o serviço dos pobres empreendido com alegria, coragem, constância e amor (SV IX, 593). Ou ainda o esforço de Vicente de enlaçar o recolhimento orante e a dedicação apostólica, ao afirmar que a vida de um Missionário deveria ser como “a de um Cartuxo em casa e a de um apóstolo no campo, e que, segundo vá se esforçando com mais interesse em sua perfeição interior, também suas tarefas e trabalhos serão mais frutuosos para o bem espiritual dos outros” (Abelly I, 16).

Na mesma esteira, situa-se sua convicção no que tange à integração entre contemplação e ação, sendo que a primeira deve preceder a segunda como a seiva que a robustece: “A Igreja é comparada a uma grande messe que requer operários que trabalhem. Nada há mais conforme o Evangelho do que acumular luzes e forças para a própria alma, na oração, leitura e solidão, e ir em seguida repartir com os homens este alimento espiritual. É fazer o que fez Nosso Senhor e os apóstolos depois dele, é juntar o oficio de Marta ao de Maria, é imitar a pomba que digere a metade do alimento que tomou e coloca o resto, com o próprio bico, no bico dos filhotes, para alimentá-los. Eis como devemos fazer, eis como devemos testemunhar a Deus, por nossas obras, que o amamos” (SV XI, 41). A insistência do fundador soa como uma paráfrase do Evangelho que situa o seguimento de Jesus entre a montanha da intimidade com o Pai e a planície do contato com as feridas e anseios humanos (cf. Lc 6,12-19). Seja-nos dado ainda recordar a recomendação de Vicente de Paulo sobre a relação entre a lucidez resoluta requerida pelos princípios e finalidades e a flexibilidade criteriosa sugerida por suas mediações e aplicações. Tudo isso sem recalcitrar no esforço de adequar os meios aos fins, posto que estes nem sempre podem justificar aqueles. Palavras semelhantes são recorrentes nas cartas e alocuções do santo e revelam a sensatez de seu espírito, sobretudo quando se tratava de orientar os que iam exercer ofícios de governo dentro de suas Comunidades: “É preciso ser firmes e invariáveis quanto ao fim, flexíveis e suaves quanto aos meios, já que uma coisa sem a outra estraga tudo” (SV II, 355).

Os exemplos poderiam prosseguir. O que fica, porém, é a certeza de que, no contexto atual, com seus rigorismos e permissividades, uma espiritualidade vicentina bem sedimentada estimula as sínteses vitais de que tanto precisamos para manter ou recuperar o equilíbrio humano, espiritual, relacional, apostólico, eclesial e social. Isso implica não se enclausurar em unilateralismos irremediáveis, que impõem viseiras ideológicas e esgrimem polêmicas beligerantes, nem se extraviar por espiritualismos de fuga ou por praxismos de mera conveniência.

Os tempos atuais solicitam uma espiritualidade integradora, de unidade dialética, capaz de harmonizar contemplação e compaixão, transcendência e solidariedade, libertação histórica e salvação eterna, tendo Jesus Cristo como pedra angular. Por fim, o discernimento que precede e acompanha uma espiritualidade vicentina do equilíbrio se traduz em uma vigilância paciente e ativa, que sabe identificar, à luz da fé, a oportunidade que cada momento oferece e a postura que cada situação recomenda. No mais, como diz acertadamente o Papa Francisco, “discernir em tempos de conflito requer às vezes que acampemos juntos até que amanheça” (Vamos sonhar juntos, p. 97).

A Família Vicentina pode ser comparada a uma árvore frondosa e cheia de viço, carregada de frutos e ornada de flores. Suas raízes, extensas e firmes, remetem à experiência espiritual de São Vicente, cujo carisma missionário se conserva fecundo e inspirador até os nossos dias, perpetuando o luminoso testemunho do grande místico da caridade, “arauto da ternura e da misericórdia de Deus”, como o chamou São João Paulo II. A seiva que nutre e revigora essa imensa família espiritual e apostólica provém do encontro com Jesus Cristo, evangelizador dos pobres (cf. Lc 4,18), a quem seus membros procuram seguir, amando-o e servindo-o nos menores de seus irmãos, nos quais reconhecem a presença do Senhor a interpelá-los (cf. Mt 25,40).

À sombra dessa planta de copa robusta e folhas verdejantes, abriga-se um contingente incalculável de pessoas empobrecidas, acolhidas com desvelo, evangelizadas com ardor, assistidas com diligência, promovidas com respeito. Os ramos do arvoredo vicentino são distintos quanto à coloração e ao formato de suas folhas: grupos mais ou menos numerosos, dentre os quais contamos Associações Leigas, Sociedades de Vida Apostólica, Institutos de Vida Consagrada e até Comunidades pertencentes a outras denominações cristãs. Dispersos pelos cinco continentes, fundados em distintas épocas e contextos, reúnem mais de 4 milhões de mulheres e homens de todas as idades, leigos e leigas, consagrados e consagradas, diáconos, padres e bispos, todos sob o mesmo impulso dinamizador recebido do Espírito através de Vicente de Paulo. O carisma vicentino revela sua pujança nas diferentes iniciativas de evangelização e serviço aos pobres desenvolvidas nos mais de 150 países onde a Família se faz presente.

Enxertados, pois, no mesmo caule carismático, os mais de 260 ramos que constituem a Família Vicentina coincidem na referência a São Vicente, identificado como fundador, inspirador ou patrono desta sua secular linhagem. Não foi à toa que o Papa Francisco quis inclui-lo entre “os grandes santos que fizeram a história do cristianismo”, vendo-o, também a ele, como um “sinal concreto”, sem o qual “a caridade que anima a Igreja inteira correria o risco de esfriar-se, o paradoxo salvífico do Evangelho de atenuar-se, o sal da fé de diluir-se num mundo em fase de secularização” [Carta às pessoas consagradas (2014), cap. III, n. 2).

Nesta “grande rede de caridade”, tecida de muitos fios, o carisma vicentino revela sua perene atualidade e seu extraordinário potencial para responder a apelos imprevistos e a novos desafios. E o faz com grande vitalidade profética, a partir de uma aproximação concreta ao mundo dos pobres, promovendo ações transformadoras fundadas no Evangelho, inserindo-se na missão da Igreja e atuando em organismos internacionais, como, por exemplo, em diferentes instâncias da Organização das Nações Unidas (ONU), onde os representantes da Família Vicentina procuram fazer ecoar o clamor daqueles que se encontram nas periferias do mundo.

Por tudo o que sua missão requer, a Família Vicentina se mostra sempre mais convicta da necessidade de uma sólida formação, que lhe assegure uma espiritualidade consistente, sedimentada na Palavra de Deus e na herança de seu grande inspirador, e um compromisso caritativo-missionário sempre mais qualificado e perseverante. O cultivo da espiritualidade e o empenho apostólico encontram seu terreno fértil no cotidiano da vida, na comunidade de fé, no contato direto com os pobres, na doação escondida de cada dia, na reunião do pequeno grupo, ali onde as sementes germinam em silêncio e seus frutos são compartilhados.

Dentre os “descendentes” de São Vicente, diretos ou indiretos, despontaram admiráveis rebentos de santidade, mulheres e homens que, revestidos do espírito de Cristo, floresceram na caridade missionária, fazendo “da misericórdia sua missão vital” (Papa Francisco. Misericordiae vultus, n. 24), para a glória de Deus e o bem dos pobres. Nessa admirável floração, todos os membros da Família Vicentina podem encontrar modelos os mais diversos, aptos a suscitar e corroborar atitudes e empenhos solidamente embasados em nossa comum vocação à santidade. Na conclusão de sua magnífica Encíclica Deus caritas est, o Papa Bento XVI quis colocar São Vicente e Santa Luísa entre os santos “que praticaram a caridade de forma exemplar”, acrescentando que eles “permanecem modelos insignes de caridade social para todos os seres humanos de boa vontade”. Como eles, também os modelos de santidade que rejuvenescem a vetusta árvore da Família Vicentina e nos educam na vivência de nosso carisma missionário “são verdadeiros portadores de luz dentro da história, porque são homens e mulheres de fé, esperança e caridade” (n. 40). Com efeito, “nos santos, torna-se óbvio como quem caminha para Deus não se afasta dos seres humanos, antes, ao contrário, torna-se-lhes verdadeiramente próximo” (n. 42).

Na herança de São Vicente de Paulo, vigoroso mestre espiritual e infatigável missionário dos pobres, a Família Vicentina redescobre sem cessar a centelha capaz de revitalizá-la em sua paixão pelo Evangelho e em sua compaixão pelos que se acham nas periferias existenciais da vida. Sobre estes, derrama o bálsamo da misericórdia, visibilizando-a em gestos de solidariedade, palavras de consolação e ações sócio-transformadoras. Conscientes de que “não há caridade que não seja acompanhada de justiça” (SV II, 54), os herdeiros de São Vicente se empenham criativamente em mudar as estruturas geradoras de pobreza, a partir de uma nova maneira de entender os pobres, interpretar as situações que envolvem suas vidas e atuar em comunhão com eles e em colaboração com outras instituições alinhadas com a mesma causa.

A crise social agravada ao extremo pela pandemia da COVID-19 deixou os pobres ao relento de uma noite densa e gélida. Se toda a humanidade se encontra vulnerável psicológica e espiritualmente, muito mais dramática é a situação daqueles que acumulam vulnerabilidades de todos os tipos. A Família Vicentina se vê interpelada a revitalizar sua presença e atuação junto aos mais sofridos e esquecidos, apoiada no Evangelho da vida e da esperança, da misericórdia e do serviço. Sirvam-nos de alento estas palavras do Papa Francisco: “O que o Senhor nos pede hoje é uma cultura de serviço, não uma cultura de descarte. Mas não podemos servir aos outros se não deixamos que sua realidade nos afete. Para que seja assim, tens que abrir os olhos e deixar-te tocar pelo sofrimento à tua volta. Assim, poderás escutar a voz do Espírito de Deus que te fala a partir das margens” (Vamos sonhar juntos, p. 16).

Atuando nas margens e a partir das margens, a Família Vicentina se deixa tocar pelas carências humanas e perscruta nelas a voz do Espírito que a confirma em sua vocação e a impele a um renovado compromisso caritativo e missionário.

Publicado originalmente como entrevista no site do Instituto Humanitas Unisinos, em 27/09/2021.
Pe. Vinícius Augusto Ribeiro Teixeira, CM
Fonte: https://www.pbcm.org.br/

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