O governo deve estar a serviço do povo

por | nov 25, 2020 | Formação, Reflexões | 0 Comentários

Convidamos vocês a descobrirem Frederico Ozanam através de seus próprios escritos, cofundador da Sociedade de São Vicente de Paulo e um dos membros mais queridos da Família Vicentina (embora, ainda pouco conhecido).

Frederico Ozanam escreveu muito nos seus 40 anos de vida. Estes textos – que chegam até nós de um passado não muito distante – são reflexos da realidade familiar, social e eclesial vivida por seu autor que, em muitos aspectos, tem muita semelhança com a que vivemos atualmente, particularmente no que se refere à desigualdade e à injustiça que sofrem milhões de empobrecidos em nosso mundo.

Comentário:

Frederico escreveu  este texto apenas 15 meses após a fundação da primeira conferência de caridade (de 23 de abril de 1833). Neste curto período de tempo já haviam acontecido muitas coisas importantes (e outras estavam a ponto de acontecer) para a incipiente Sociedade de São Vicente de Paulo:

  • Embora inicialmente tivesse resistência para admitir novos membros para a conferência, já no mês de junho de 1833 uniram-se ao grupo dos fundadores: Léonard Gorse (1808–1901)[8], Colas Gustave de la Noue (1812–1838), Charles Hommais (1813–1894), Émile de Condé (1810–1886), Amand Chaurand (1813–1896), Pierre-Irénée Gignoux (1811–1890) e Henri Pessonneaux (1812–1869), este último primo de Ozanam. Nas férias de verão de 1833, já ultrapassavam 15 membros. No início do novo ano acadêmico, mais de 25 membros solicitaram sua admissão (muitos de Lion). O número foi crescendo sem cessar (ao final de 1834 já eram mais de 100 membros[9]);
  • À pedido do confrade Le Prevost[10], a Sociedade coloca como patrono São Vicente de Paulo, no dia 4 de fevereiro de 1834. Pouco depois a conferência de caridade passaria a se chamar Sociedade de São Vicente de Paulo.
  • Com o crescimento da Sociedade, o presidente Bailly achou importante ter o apoio do clero. Pediu que se preparasse um informativo, que foi lido na reunião do dia 27 de junho de 1834[11], com a presença do convidado Padre Pierre-Augustin Faudet (1798-1873), pároco de Santo Estêvão do Monte, que ficou muito impressionado com a obra realizada pelos leigos:

Ser úteis a nossos irmãos e a nós mesmos foi a dupla finalidade que nos propusemos. […] Nos tornamos auxiliares das Filhas da Caridade, a quem pedimos conselho e ajuda, e com elas aprendemos a conhecer as misérias dos Pobres. […] Nos dirigimos aos Pobres já inscritos nas listas de caridade; tivemos que bater às portas do indigente para ajudas materiais. […] Entrando no domicílio do Pobre foi nos permitido curar as feridas de seu corpo. […] A caridade, senhores; esta é a palavra que deve mobilizar os homens; […] com ela uniremos os homens e as coisas, pois sua humanidade, um dia, só terá irmãos em seu seio.

  • Devido ao grande número de membros, em dezembro de 1834 começa a se considerar a divisão em dois da primeira conferência. O debate foi longo: Ozanam apoiava a divisão, outros – entre eles Paul Brac de La Perrière (1814-1894), secretário da conferência – estavam contra. Finalmente, no dia 17 de fevereiro de 1835 se votou pela divisão, que foi aprovada, dando lugar as conferências de Santo Estêvão do Monte, a original, e a nova de São Sulpício.

Em julho de 1834, Frederico era um jovem de ideias bastante legitimistas[12], que estudava direito e literatura na Universidade de Sorbonne em Paris. Não está alheio ao vai-e-vem político que ocorre em seu país, e fala deles com seus amigos, embora opine que ainda são “demasiadamente jovens para intervir na luta social”.

Anos depois, Frederico apostou numa democracia baseada nos valores cristãos, onde participariam políticos católicos que dedicassem seu cargo ao alívio das necessidades do povo e, em particular, das classes necessitadas. Na França, alguns de seus irmãos religiosos exigiam que a Igreja, como instituição, tivesse poder e influência sobre os órgãos governamentais; mas este não era o posicionamento de Ozanam.

Em 1830, Félicité Robert de Lamennais (antes de cair em desgraça[13]) escreve uma carta apontando nesta mesma direção: a separação Estado-Igreja:

A Igreja é oprimida por todos os governos e pereceria se esta situação durasse. Portanto, é preciso libertar a Igreja, o que hoje só pode ser feito separando-a totalmente do Estado. A salvação, a vida, depende disso e não duvido um só instante que, nestas grandes catástrofes  de que somos e continuaremos sendo testemunhas, o objetivo final da Providência  é de trabalhar para esta tão necessária libertação.

No que diz respeito à França, não duvido que tenhamos que atravessar tempos muito tristes e muito difíceis. Não disse nada sobre isso que não continue pensando ainda. Mas cada condição tem seus próprios deveres, e todos os deveres de nossa atual condição se resumem, em minha opinião, num só: o de nos unirmos para impedir, se assim for possível, a anarquia que nos ameaça e, portanto, apoiar francamente o poder atual enquanto nos defende, ao defender-se a si mesmo, contra a fúria do jacobinismo[14]. E o que o jacobinismo fará se triunfar? Perseguirá a religião, abolirá toda educação cristã, atacará violentamente as pessoas, as propriedades e todos os direitos. E o que devemos pedir então? A liberdade religiosa, a liberdade de educação, das pessoas e das propriedades, ou seja, desfrutar dos direitos sem os quais a sociedade não pode sequer ser entendida; ou seja, o que nunca deixei de reivindicar nos últimos quinze anos. E como continuar estas reivindicações sem a liberdade de imprensa? Eliminá-la e não haverá mais nada a se fazer senão curvar a cabeça sob todas as tiranias. Para o futuro, como para o presente, não há, pois, salvação possível senão com a liberdade e para a liberdade[15].

Ozanam não reflete sobre um sistema político determinado (monarquia ou república), mas sobre quais princípios deve se basear qualquer sistema. Utiliza a mesma expressão para qualificar os sistemas que ele reverencia: “o sacrifício de cada um em proveito de todos”.

Diante de uma classe política, que ao longo da história, e também hoje, tem se preocupado muito pouco pelo bem comum e muito pelo próprio interesse, o papa Francisco disse, em 2019, que “um político jamais deveria semear ódio ou medo, mas somente esperança. Devemos ajudar-lhes a serem honestos, a não fazer campanha com bandeiras desonestas: a calúnia, a difamação, o escândalo”[16].

Ozanam termina sua reflexão reconhecendo que ele e seus amigos são ainda muito jovens para intervir nestes assuntos. Mas, mesmo assim, os chama a realizar o que está ao seu alcance para aliviar as necessidades sociais e “tratar de fazer o bem para alguns”. Por isso, está muito entusiasmado com o trabalho das conferências, e conclui afirmando que desejaria que “todos os jovens sábios e de coração se unissem para alguma obra caritativa, e que se formasse em todo o país uma vasta associação generosa para o alívio das classes populares”.

Como vimos no início deste comentário, a Sociedade de São Vicente de Paulo estava dando passos importantes para atingir este objetivo.

Sugestões para reflexão pessoal e conversa em grupo:

  1. De que maneira poderíamos propor nossos valores cristãos à sociedade em que vivemos?
  2. Como é que promovemos – ou poderíamos promover – a adesão para alguma obra caritativa  entre os mais jovens, como sugere Ozanam neste texto?

Notas:

[1]   Nero (37–68), imperador do Império Romano cujo governo está associado à tirania e ao despotismo, às execuções sistemáticas e a perseguição dos cristãos.

[2]   São Luís IV da França (1214–1270), dele que se fala que encarnou o ideal do monarca cristão, pelo seu espírito de oração e penitência, devoção, sabedoria e prudência no seu governo.

[3]   A democracia ateniense é a primeira democracia documentada na história, do séc. IV a.C.. O direito de voto era limitado a homens adultos que fossem cidadãos e atenienses, e que tivessem concluído seu treinamento militar.

[4]   O Terror Francês “foi um período entre 1793 e 1794 caracterizado pelas mudanças centradas na violência da Revolução Francesa. Um período que se destacou pelas medidas de caráter impositivo”. Cf. Miriam Martí, El Gobierno del Terror en la Revolución Francesa, en https://goo.gl/LmnjUY (último acesso: 20 de abril de 2020).

[5]   “Todo poder provém de Deus”. Cf. Rom 13,1ss.

[6]   A obra Minhas prisões (título original: Le mie prigioni), do escritor italiano Silvio Pellico (1789-1854), foi escrita durante sua prisão (de 1820 a 1830) quando foi acusado de ideias políticas liberais e contrárias ao regime imperial austríaco. A narrativa, livre de ódio e rancores, constitui num valioso testemunho histórico sobre as ideias e costumes que moviam os europeus naqueles tempos. O livro teve grande sucesso em toda a Europa.

[7]   Palavras de um crente, de Félicité Robert de Lamennais, obra publicada no dia 30 de abril de 1834. Partindo da ideia da fraternidade universal de todos os homens, Lamennais faz uma severa crítica da realidade social e eclesial de seu tempo. Sugeriu o afastamento e a ruptura de seu autor (que era sacerdote) com a Igreja católica

[8]   Embora algumas fontes indiretas afirmem que o Senhor Gorse foi um dos membros fundadores da Sociedade, as provas apresentadas são muito frágeis, e nada indica taxativamente que ele o foi, embora tenha sido um dos primeiros membros.

[9]   Cf. Charles Mercier, La Société de Saint-Vincent-de-Paul: une mémoire des origines en mouvement, 1833–1914, Paris: L’Harmattan, 2006, introdução.

[10] Jean-Léon Le Prevost (1803–1874) não fazia parte do grupo fundacional da Sociedade, embora tenha sido convidado a ingressar nela muito cedo. Em 1835 foi eleito tesoureiro do Conselho Geral da Sociedade. No mesmo ano, no dia 3 de março, acontece a primeira reunião da conferência de São Sulpício, da qual foi eleito presidente no dia 11 de dezembro de 1836.  Durante quase dez anos, o Sr. Le Prevost ofereceu o melhor de si para a Sociedade de São Vicente de Paulo.

Depois de um casamento agitado (casou-se no dia 19 de junho de 1834 com a Sra. Aure de Laffond, 17 anos mais velha que ele; separaram-se em 1845), pouco a pouco vai sentindo o chamado para um compromisso mais permanente; escreve: “Há tanto que fazer pelos pobres! […] A colheita é grande. […] Não basta dar um pouco de tempo depois da jornada de trabalho; é preciso um compromisso a tempo integral”. Assim, junto com o jovem Maurice Maignem (1822-1890) e Clément Myionnet (1812-1886), ambos confrades da Sociedade, e na presença de Dom Guillaume Angebault (1790-1869), bispo de Angers, diante das relíquias de São Vicente de Paulo na capela da Rue de Sèvres em Paris, formalizaram seu compromisso de servir os Pobres por toda a vida, no dia 3 de março de 1845.  Nasce, assim, a congregação dos Religiosos de São Vicente de Paulo. Le Prevost foi ordenado sacerdote no dia 22 de dezembro de 1860. Em 1869 mudou-se para Roma para apresentar as Constituições da Ordem e pedir a benção do Santo Padre. Sua saúde, cada vez mais precária, o obriga a retirar-se em 1871, para uma casa de formação. Faleceu em Chaville, no dia 30 de outubro de 1874.

[11]  “Relatório das atividades da Sociedade de São Vicente de Paulo, desde sua origem”. Este relatório, foi um verdadeiro resumo dos primórdios da Sociedade de São Vicente de Paulo, e ficou conhecido de forma imprópria como “Informe de la Noue”, porque foi este o confrade que fez a leitura na reunião. O texto foi elaborado por uma comissão nomeada dez dias antes do encontro, formada por Gustave de La Noue, Jules Devaux (1811-1880) e Frederico Ozanam. O texto original, conservado na biblioteca do Conselho Geral da Sociedade de São Vicente de Paulo em Paris, contém 18 páginas escritas à mão, não identificada. Possui várias anotações ou correções autografadas de Ozanam.

[12]  Monarquista na sua adolescência, Ozanam vai progressivamente transformando suas ideias políticas, que acabariam abraçando a República.

[13]  Felicité de Lamennais (1782–1854) foi um defensor da separação da Igreja e o Estado. Seu irmão mais velho, Jean-Marie de Lamennais (1780-1860) foi o fundador dos Irmãos da Instrução Cristã de Ploërmel (menesianos) e certamente influenciou Félicité para que entrasse no seminário, embora talvez não tivesse vocação. Félicité fundou o jornal L´Avenir, que durou pouco mais de um ano, de outubro de 1830 até novembro de 1831, cuja linha editorial buscava conciliar as aspirações liberais e democráticas do povo francês com a Igreja. Após a condenação implícita de Gregório XVI em sua encíclica Mirari Vos, o jornal fecha e começa o progressivo distanciamento de Lamennais da Igreja. Depois de ser repreendido por Roma por suas ideias católicas liberais, rompeu com a Igreja em 1834, com a publicação de “Palavras de um crente”, que Ozanam menciona no texto. Neste livro, Lamennais chega a desqualificar o Papa Gregório XVI, considerando-o um renegado por seus movimentos e ideias políticas (por exemplo, o papa, na mencionada encíclica Mirari Vos, condenou a liberdade religiosa e a separação entre a Igreja e o Estado).

Ozanam, como Lacordaire, não comungava com Lamennais, não tanto na substância das questões, mas na forma como foram conduzidas, radicalmente diferente nos dois casos.

[14]  Facção radical surgida na Revolução, responsáveis em grande parte pela repressão durante o Reinado do Terror.

[15]  Carta de Félicité Robert de Lamennais à condessa Luisa de Senft, no dia 5 de setembro de 1830. Cf. E. K. Bramsted y K. J. Melhuish, Las grandes corrientes del liberalismo, Madrid: Unión Editorial, 1982, pág. 148.

[16]  Papa Francisco, Encontro com os meios de comunicação no voo de regresso da Romênia para Roma, no dia 2 de junho de 2019.

Javier F. Chento
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