A escravatura é um assunto do passado, mas falar sobre ela tem de ser do presente

por | jun 7, 2023 | Formação | 0 Comentários

A escravatura moderna de que falamos brevemente não é a única forma de subjugação dos seres humanos conhecida e praticada ao longo da história.

Aprendemos na escola que os portugueses deram novos mundos ao mundo, estudámos a viagem do Gama, decorámos versos épicos e vimos mapas com bandeirinhas ou padrões, que certificam os lugares distantes que nos pertenceram. Contaram-nos e reproduzimos com orgulho a narrativa de euforia e coragem com que iniciámos a primeira globalização. Assumimos a responsabilidade poética pela cor mulata, sem ler nela mais do que a expressão do encontro de raças diferentes, até então distantes. E dizemos de peito aberto que o português é uma das línguas mais faladas no mundo.

Tudo isto faz sentido e é legítimo pensar-se, mas isto não é o tudo. Não é, sabemos hoje, a história toda, o discurso unívoco, o passado glorioso, o caminho de uma só via, a felicidade coletiva.

Na palavra e na cor mulata de homens e mulheres de seiscentos a novecentos está amiúde inscrita a história de um encontro que não foi de paz; nos lugares distantes que “nos pertenceram” está registada uma imposição à força; da primeira globalização fazem parte a morte, a prisão, o saque, o apagamento de culturas, a escravatura.

O que sabe atualmente um estudante do secundário sobre a escravatura? O que sabe um jovem adulto? O que sabemos nós?

Provavelmente o que vimos nos filmes ou em algum programa de televisão, o que estudámos na escola como um subcapítulo do grande tema dos Descobrimentos: muito pouco. Sabemos que Portugal iniciou o tráfico de escravos de África para o Brasil, “mas também foi o primeiro país a abolir a escravatura”. Que fraco consolo esse… Que fácil desculpa na balança da nossa moralidade histórica e da nossa tranquilidade presente.

Em 2017 houve um grupo de cidadãos, ligados às plataformas SOS Racismo e Descolonizando, que se insurgiu contra a inauguração de uma estátua ao Padre António Vieira (1608-1697), no Largo Trindade Coelho em Lisboa, acusando-o de ser um “esclavagista seletivo”. Em 2018, a proposta constante do programa eleitoral do presidente da câmara de Lisboa, Fernando Medina, para a construção de um “Museu das Descobertas” foi assunto de debate por causa da eventual localização, do conteúdo expositivo e sobretudo por causa do nome do futuro museu. A polémica chegou “lá fora”, incluindo um artigo no jornal inglês The Guardian (17-9-2018, assinado pela jornalista Jenny Barchfield).

Para muitos, discutir se devemos continuar a usar a palavra “Descoberta” quando nos referimos ao período das navegações marítimas iniciadas no século XV pelos portugueses, ou recusar a homenagem ao Padre António Vieira, são exageros deslocados e tresloucados, é dar prioridade a detalhes linguísticos ineludíveis e desviar a nossa atenção de matérias mais urgentes.

Consigo identificar-me com estes pontos de vista. Todavia, é minha convicção que não podemos deixar de ouvir essas vozes que exigem continuar a pensar e debater sobre o passado colonial, que não podemos ignorar a necessidade de conversar sobre ele, de o estudar sem preconceitos, quiçá de reescrever (com mais matizes, com mais vozes, com mais factos, com maior visibilidade) a narrativa simplista do “bom colonizador”.

A escravatura moderna de que falamos brevemente não é a única forma de subjugação dos seres humanos conhecida e praticada ao longo da história (infelizmente, não é sequer apenas um assunto do passado e de geografias distantes).

Não arrumemos o lado disfórico do nosso passado nacional como um assunto fechado. Não é necessário vivê-lo como um combate visceral, mas é justo não esquecer as mulheres e homens a quem noutros tempos, fundamentalmente por terem a pele de outra cor que não a do branco europeu, foi retirada a humanidade (e com ela a dignidade, a esperança, o lugar, o direito…). É justo não esquecer hoje os que se sentem seus herdeiros e que querem falar, finalmente vêm para o espaço público e têm de ser ouvidos, porque têm algo a dizer, algo que jamais foi dito ou que nunca escutámos.

A escravatura é um assunto do passado, mas falar sobre ela tem de ser do presente. Com tempo, sem medo.

Inês Espada Vieira
Texto incialmente publicado na Revista Mensageiro de Santo António, em 2019
Fonte: https://www.padresvicentinos.net/

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