Ter privilégio não significa que um indivíduo seja imune às dificuldades da vida, mas significa ter um benefício ou vantagem que se recebe na sociedade por natureza de sua identidade.
Começo esta reflexão com uma frase que a maioria de nós já ouviu, e até mesmo sente-se compelido a repeti-la: “Ninguém vai reconhecer o quanto você lutou para chegar aonde chegou. Quando verem suas conquistas, vão dizer que é sorte.” E é fato que as lutas cotidianas são desafios invisíveis e que há um hercúleo trabalho pessoal para se manter vivo como sujeito social e político. Mas, e quanto ao caminho percorrido, será que a tal luta para “chegar lá” é a mesma para todos? Minha questão se faz como meio de ponderação na qualificação das condições e as diferentes intensidades desta luta diária. Mas busca, principalmente, entender que há muitos de nós que tem que lutar exponencialmente mais para chegarem em posições muito menores, enquanto outros, poucos, tem o caminho facilitado por condicionantes sociais, econômicos e culturais construídos histórico-politicamente. Ou seja, que há pessoas, uma minoria, que estão em posição privilegiada.
E este é o cerne da questão: discutir privilégios, quando muitos não percebem o real significado do termo. Ter privilégio não significa que um indivíduo seja imune às dificuldades da vida, mas significa ter um benefício ou vantagem que se recebe na sociedade por natureza de sua identidade. Exemplos de tipos de identidade que usufruem de privilégio individual incluem: raça, gênero, orientação sexual, religião, status socioeconômico, país de origem, idioma ou habilidade.
É bom enfatizar que em momento algum pretende-se desvalorizar ou questionar o trabalho diário realizado por quem quer que seja, os méritos pessoais ou mesmo os desafios que aparecem no nosso caminho que só quem passa por eles conhece suas dificuldades. Pelo contrário, a ideia é tentar refletir sobre quanto o privilégio de poucos é fruto de uma desigualdade econômica, social e cultural, e como alguns grupos específicos da nossa comunidade tem que trabalhar muito mais do que um outro grupo, dos privilegiados, para chegar a resultados equivalentes, ou ainda resultados relativamente mais baixos.
O núcleo da questão é, portanto, que existem diferentes formas de percepção de como é a constituição da nossa sociedade. Uma das visões diz haver uma dicotomia entre os que colocam o ser humano na centralidade, com a prerrogativa de que somos todos iguais e assim devemos viver, e os que vivem acreditando e se beneficiando de valores e práticas discriminatórias que primam pela desigualdade derivadas de privilégios de certa visão política e econômica. E essas diferenças de concepção de mundo e de sociedade que influenciam como o indivíduo vê a si mesmo e ao outro, se desdobram em práticas discriminatórias, e, muitas vezes, na manutenção dos privilégios de alguns que detém os espaços de decisão.
Parece-me que quando falamos de privilégio há uma certa dificuldade para quem está na parte tida como “superior” de poder conseguir se colocar no lugar de quem está em outras situações, de maior vulnerabilidade econômica e social. Por isso, considero que reconhecer que se tem privilégio, ou privilégios, é o primeiro passo para mudar a realidade desigual que nos cerca.
Você acha que teve ou tem algum privilégio que deu um “empurrão” na sua caminhada pessoal? Lembrando que isso não desmerece ou desqualifica trabalho algum, mas sim ajuda a perceber a realidade desigual que existe, e, uma vez consciente dela, ser capaz de apoiar os que mais precisam e, assim, construir uma sociedade mais justa.
Segue abaixo um vídeo de uma dinâmica que ajuda muito perceber se nossa trajetória contou com certos privilégios. Esta atividade mostra claramente como a desigualdade é uma desvantagem em todos os aspectos na vida das pessoas que a sofrem. Nela, as perguntas iniciais são feitas para um grupo de pessoas, que estão dispostas uma ao lado da outra formando uma linha. Ao responder as perguntas, os participantes dão passos para frente ou para trás, de acordo com a intenção da pergunta, e no final, vê-se como as dificuldades que as pessoas sofrem em relação a outras influenciam na vida cotidiana. O vídeo, realizado pelo Instituto Identidades do Brasil, é possível ver como mesmo em um grupo pequeno o impacto dos privilégios influenciam no cotidiano: https://youtu.be/MuOE3IJZoZU. Eis algumas das perguntas(1) para refletirmos:
– “Se sua família esteve presente em sua infância e adolescência, dê um passo adiante.
– Se ganhou mesada durante sua infância ou adolescência, dê um passo adiante.
– Se sua casa já encheu de água ou se já perdeu algum bem por morar em área de risco, dê um passo para trás.
– Se já estudou em instituição pública durante o ensino básico, fundamental ou médio, dê um passo para trás.
– Se você teve problemas em fazer amigos na escola ou arranjar emprego em função da sua raça, dê um passo para trás.
– Se já ouviu piadas por conta da cor da sua pele ou tipo de cabelo, dê um passo para trás.
– Se já desejou ter outra cor de pele, dê um passo para trás.
Se você pode manifestar carinho e afeto pelo seu par romântico em público sem medo de represália, ridicularização ou violência, dê um passo para frente.
– Se foi diagnosticado por alguma deficiência física ou mental, dê um passo para trás.
– Se tem sua liberdade de ir e vir sem medo de sofrer abuso ou violência sexual, dê um passo para frente”.
Pensar em privilégios e desafiá-lo como regra da sociedade é um exercício contínuo. É algo que deve se tornar parte da consciência diária. Mas é um conceito difícil de lidar e que não se vê facilmente. Trata-se de constantemente desafiar nossa posição no mundo, e entender os desequilíbrios de poder dos quais fazemos parte. A importância disso é que uma vez conhecendo nosso “lugar de fala”, também é possível ver o “outro” e pensar em conjunto como podemos mudar essa cultura de desigualdade e como oferecer a esta sociedade, dividida injustamente, opções de igualdade de oportunidades, reduzindo, assim, as diferenças entre seres humanos.
(1) Há também o vídeo original em inglês, https://youtu.be/hD5f8GuNuGQ, que detalha as 50 perguntas da dinâmica e que podem ser um ótimo exercício de reflexão pessoal quanto à realidade social que somos parte:
“If your parents worked nights and weekends to support your family, take one step back.
If you are able to move through the world without fear of sexual assault, take one step forward.
If you can show affection for your romantic partner in public without fear of ridicule or violence, take one step forward.
If you have ever been diagnosed as having a physical or mental illness/disability, take one step back.
If the primary language spoken in your household growing up was not english, take one step back.
If you came from a supportive family environment take one step forward.
If you have ever tried to change your speech or mannerisms to gain credibility, take one step back.
If you can go anywhere in the country, and easily find the kinds of hair products you need and/or cosmetics that match your skin color, take one step forward.
If you were embarrassed about your clothes or house while growing up, take one step back.
If you can make mistakes and not have people attribute your behavior to flaws in your racial/gender group, take one step forward.
If you can legally marry the person you love, regardless of where you live, take one step forward.
If you were born in the United States, take one step forward.
If you or your parents have ever gone through a divorce, take one step back.
If you felt like you had adequate access to healthy food growing up, take one step forward
If you are reasonably sure you would be hired for a job based on your ability and qualifications, take one step forward.
If you would never think twice about calling the police when trouble occurs, take one step forward.
If you can see a doctor whenever you feel the need, take one step forward.
If you feel comfortable being emotionally expressive/open, take one step forward.
If you have ever been the only person of your race/gender/socio-economic status/ sexual orientation in a classroom or workplace setting, please take one step back.
If you took out loans for your education take one step backward.
If you get time off for your religious holidays, take one step forward.
If you had a job during your high school and college years, take one step back.
If you feel comfortable walking home alone at night, take one step forward.
If you have ever traveled outside the United States, take one step forward.
If you have ever felt like there was NOT adequate or accurate representation of your racial group, sexual orientation group, gender group, and/or disability group in the media, take one step back.
If you feel confident that your parents would be able to financially help/support you if you were going through a financial hardship, take one step forward.
If you have ever been bullied or made fun of based on something that you can’t change, take one step back.
If there were more than 50 books in your house growing up, take one step forward.
If you studied the culture or the history of your ancestors in elementary school take one step forward.
If your parents or guardians attended college, take one step forward.
If you ever went on a family vacation, take one step forward.
If you can buy new clothes or go out to dinner when you want to, take one step forward.
If you were ever offered a job because of your association with a friend or family member, take one step forward.
If one of your parents was ever laid off or unemployed not by choice, take one step back.
If you were ever uncomfortable about a joke or a statement you overheard related to your race, ethnicity, gender, appearance, or sexual orientation but felt unsafe to confront the situation, take one step back.”
Aline Villas Boas
Fonte: https://www.padresvicentinos.net/
0 comentários