Mesmo com tantos conflitos e miséria, uma coisa ainda consegue fazer-me feliz e sentir esperança. É uma sociedade cheia da solidariedade. É onde agora estou a viver.
A invasão da Ucrânia pela Rússia já se iniciou há três meses, mas ainda não consigo esquecer o que me veio à ideia na manhã do dia 24 de fevereiro. Sentei-me à mesa a tomar o pequeno-almoço com o meu computador ao lado. Depois de o ter ligado, as notificações do Público com o título de “A Europa está em guerra” ou “A Rússia invadiu a Ucrânia” começaram a bombardear. O que me surgiu, em primeiro lugar, na cabeça foi que uma ainda não acabou, outra já começou. Sim, toda a humanidade ainda está a combater a COVID-19. Noutras partes do mundo longe de nós, há pessoas que ainda sofrem do terrorismo, dos conflitos armados, dos problemas ambientais e de muitos outros problemas sociais. Contudo, não parece que estamos a caminhar para o fim desses sofrimentos. No fim de contas, uma outra guerra já começou e esta ainda continua.
Poucos dias depois do início da guerra, o que saltou à nossa vista não foram só as mortes, os feridos, as cidades destruídas, as sanções contra a Rússia e a solidariedade, mas também que os russos se tornaram o alvo da discriminação e de bullying em Portugal. Alguns receberam telefonemas, mensagens ou comentários nas redes sociais, com palavras agressivas como “os russos são culpados” ou “têm de morrer”. O primeiro restaurante russo em Lisboa, A Tapadinha, que perdeu a maioria dos clientes, passou uns dias difíceis, mesmo sendo a proprietária portuguesa e os empregados portugueses e ucranianos. A discriminação chegou também às escolas. Umas crianças com origem russa ou que falam russos receberam críticas ou foram chamadas “agressoras” ou “malditas”.
Quando li essas notícias, fitando os olhos nessas palavras tão pesadas, lembrei-me de que no início de outra guerra, a invasão dos seres humanos pelo coronavírus, muitos chineses no estrangeiro, ou mesmo só quem tem uma cara asiática, sofreram também com essas discriminações. Quando os primeiros casos apareceram e o vírus começou a espalhar-se em Portugal, fui chamada umas vezes “coronavírus” na rua só por ser chinesa.
Para mim, a discriminação era, e ainda é, mais horrível e perigosa que o vírus próprio, porque o que realmente prejudica é um coração cego, sendo incapaz de identificar a verdade, identificar o inimigo real, incapaz de perceber o que é que verdadeiramente significa a paz. Perante a guerra contra a pandemia, o inimigo não são os chineses, mas sim o vírus. Perante a invasão da Ucrânia, o inimigo não é o povo russo, mas sim Putin, quem mandou a invasão e até tentou torná-la uma maldade justificada, bem como os que apoiam, independentemente da nacionalidade.
Percebo claramente o que significa acontecer uma guerra. Significa feridos e mortes e destruições de casas. Significa perda de família, dos amados e amadas. Significa lágrimas, sangue e um desejo da paz que nunca se tem. Por isso, as sanções económicas contra a Rússia são totalmente razoáveis porque é uma maneira de enfraquecer a sua capacidade de prosseguir a invasão. Contudo, a discriminação não é uma solução, mas é uma demonstração de perda da razoabilidade e perda de um coração claro.
No início de abril, assisti a uma aula aberta de tradução na minha faculdade. A aula foi organizada pelos professoras e alunos de tradução generalista de inglês, de tradução literária de alemão e de tradução literária de francês. Os alunos tinham traduzido três textos sobre o conflito Rússia-Ucrânia para português. Os textos originais foram publicados pelos clubes PEN (Poetas, Ensaístas, Novelistas), neste caso, clube inglês, alemão e francês. Cada um falou de um aspeto diferente. Na aula, os representantes das três cadeiras apresentaram os seus trabalhos de tradução. Gostei especialmente do texto publicado pelo Clube PEN Alemão, titulado “Der Feind heißt Putin, nicht Puschkin” (O inimigo chama-se Putin, não Puschkin). O texto deu ênfase a que perante essa guerra, o inimigo real é Putin, mas não a cultura russa, que deve ser respeitada. Adicionou que se generalizarmos todos os russos e formos levados pelas hostilidades contra russos, a loucura irá vencer a razão e a humanidade. Não podia concordar mais com esta ideia. Podemos zangar-nos com a guerra, com Putin. Podemos ser empáticos sobre a Ucrânia. Todavia, não podemos deixar de ser razoáveis nem humanos.
Mesmo com tantos conflitos e miséria, uma coisa ainda consegue fazer-me feliz e sentir esperança. É uma sociedade cheia da solidariedade. É onde agora estou a viver. Fiquei tocada quando vi as notícias sobre como é que os cidadãos, especialmente uns casais russos-ucranianos, e umas organizações ofereceram ajuda à Ucrânia. Acredito que na sociedade existem poucos corações cegos, mas muitos belos e claros, bem como muitas mentes razoáveis e brilhantes.
Nesta era cheia de desafios e acontecimentos indesejados, o que é preciso é todos nós estarmos unificados e termos um coração claro, sendo capaz de seguir a verdade, capaz de identificar o inimigo real. Quem é o nosso inimigo real? É Putin. É quem prejudica a liberdade, a paz e os direitos humanos. É todas as maldades.
Cho Ian Lei
Fonte: https://www.padresvicentinos.net/
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