Os perigos que ameaçam nossa missão

por | out 13, 2020 | Formação, Reflexões | 0 Comentários

Convidamos vocês a descobrirem Frederico Ozanam através de seus próprios escritos, cofundador da Sociedade de São Vicente de Paulo e um dos membros mais queridos da Família Vicentina (embora, ainda pouco conhecido).

Frederico Ozanam escreveu muito nos seus 40 anos de vida. Estes textos – que chegam até nós de um passado não muito distante – são reflexos da realidade familiar, social e eclesial vivida por seu autor que, em muitos aspectos, tem muita semelhança com a que vivemos atualmente, particularmente no que se refere à desigualdade e à injustiça que sofrem milhões de empobrecidos em nosso mundo.

Comentário:

No final de 1840, Frederico Ozanam teve que se mudar de Lyon para Paris, para começar a trabalhar como professor suplente de Literatura estrangeira na Universidade de Sorbonne. No dia 14 de dezembro de 1840 partiu de Lyon; chega a Paris na sexta-feira, dia 18[1], a fim de preparar o curso universitário, que começaria a ministrar no início de 1841. Poucas semanas antes, havia sido formalizado o compromisso nupcial entre Frederico e Amélia: através de um dos Livros de Família[2] dos Ozanam sabemos que a visita oficial à casa dos Soulacroix foi no dia 13 de novembro, assinando o compromisso no dia 24 do mesmo mês perante os membros das duas famílias. O Senhor Soulacroix,

como os antigos patriarcas, com o coração transbordando de alegria, tomou as mãos do futuro casal, uniu-as entre si e abençoou deste modo este vínculo que a Igreja consagraria para sempre um ano depois[3].

O casamento ficou marcado para junho de 1841. Durante os meses em que o casal está separado[4], eles mantem uma correspondência contínua e frequente. Nestas “cartas de noivado”, além de planejar sua vida futura e falar de seus projetos e expectativas, aparecem muitos outros temas, entre os quais Deus, a religião e a Sociedade de São Vicente de Paulo tem um lugar de destaque.

O fragmento que apresentamos corresponde a uma carta em que Frederico fala para Amélia de uma Assembleia Geral ocorrida no domingo, 25 de abril, festa do Bom Pastor[5], a segunda das quatro festas anuais que celebrava a Sociedade de São Vicente de Paulo[6]. Pela manhã assistem à missa, na Igreja onde repousam os restos de São Vicente de Paulo[7], “os delegados das 25 conferências de Paris, jovens entre os quais se misturavam com igualdade fraternal alguns ilustres anciãos”. E pela tarde, “uma numerosa multidão lotava o anfiteatro de nossas reuniões”. Ao mesmo tempo, “outras trinta conferências formadas nos pontos mais remotos do país celebravam a mesma solenidade”.

Frederico se pergunta nesta carta: “Não poderíamos nós […] acreditar que a providência divina nos chama à reabilitação moral de nossa pátria, quando oito anos foram suficientes para aumentar nosso número de oito para dois mil?”.

Reflete em seguida sobre quais perigos poderiam impedir que os leigos da Sociedade não chegassem a cumprir sua missão. Embora, quando escreve, Frederico está pensando na Sociedade de São Vicente de Paulo, não é ousado extrapolar estes perigos para qualquer outro ramo da Família Vicentina:

1. «Alterar nosso espírito original». Nós vicentinos, fomos chamados a seguir Jesus Cristo servidor e evangelizador dos Pobres. Cada ramo de nossa família o pratica com uma nuance diferente; por exemplo, na Sociedade a visita ao Pobre é algo fundamental – embora não exclusivo. O importante é que nosso trabalho sempre gire em torno deste carisma de serviço. Fora isso, não somos vicentinos.

2. «O farisaísmo que faz soar a trombeta diante de nós» – «esquecer a simples humildade que presidiu o começo de nossas reuniões, que nos fez amar a obscuridade sem buscar o segredo». São Vicente de Paulo já nos convidou a praticar as virtudes da humildade e simplicidade[8]. Não podemos confundir os meios com o fim. Somos um instrumento para conseguir um objetivo: ajudar os necessitados a sair de sua pobreza.

3. « A autoestima exclusiva que ignora a virtude em outros lugares diferentes da corporação preferida ». São Paulo dizia que “há diversidade de carismas, mas é um mesmo Espírito”[9]. Fazemos parte da Igreja e nela cumprimos nossa missão, sem acreditarmos sermos melhores por isso. Sobre os carisma, o Papa São João Paulo II disse:

Sejam extraordinários, sejam simples, os carismas são sempre graças do Espírito Santo que tem, direta ou indiretamente, uma utilidade eclesial, visto que se destinam à edificação da Igreja, ao bem dos homens e às necessidades do mundo[10].

4. «Um excesso de práticas e rigor». Os seguidores de Vicente de Paulo vivem uma espiritualidade simples e prática.. Podemos cair em tentação – na verdade, assim tem sido, e às vezes é – de complicar-nos com vãos exercícios piedosos ou distantes de nossa espiritualidade do serviço. A caridade nos chama a exercer a devoção[11] pensando sempre na melhor forma de servir ao Pobre e anunciar o Reino. Se nos «dedicarmos» a outros temas, ou se nos carregarmos com devoções alheias à nosso carisma, com excessivos rigores, estamos nos extraviando de nossa missão fundamental.

5. «Uma filantropia prolixa mais preocupada em falar do que agir ». Diz um provérbio castelhano que uma pessoa “perde sua força pela boca” quando suas palavras não são respaldadas por suas obras, quando fala em demasia, e tudo dá em nada. Não é assim entre nós: se nosso testemunho fica somente em palavras, não estamos cumprindo com nossa missão. Nos disse São Vicente:

Amemos a Deus, meus irmãos, amemos a Deus, mas que seja com a força de nossos braços, com o suor de nosso rosto. Pois muitas vezes os atos de amor a Deus, de complacência, de benevolência, e outras afeições semelhantes e práticas interiores de um coração amoroso, embora muito bons e desejáveis, são no entanto muito suspeitos, quando não se alcança a prática do amor efetivo: “Meu Pai é glorificado – diz Nosso Senhor – para que deis muitos frutos”[12]. Temos que ter muito cuidado nisso; por que  há muitos que, preocupados em ter um aspecto externo de compostura e o interior repleto de grandes sentimentos de Deus, param por aí; e quando se chega às ações e se apresentam oportunidades de agir, eles ficam aquém. Mostram-se satisfeitos com sua imaginação acalorada, contentes com os doces colóquios que tem com Deus na oração, falam quase como anjos; mas, quando se trata de trabalhar para Deus, de sofrer, de mortificar-se, de instruir aos Pobres, de ir à procura da ovelha perdida[13], de desejar que lhes falte alguma coisa, de aceitar as enfermidades ou qualquer coisa desagradável, ah!, tudo desmorona e lhes falta ânimo. Não, não nos enganemos: Totum opus nostrum in operatione consistit[14].

E isso é tão verdade que o santo apóstolo declara que somente nossas boas obras são as que nos acompanham para a outra vida[15]. Pensemos, pois, sobre isso; acima de tudo, tendo em mente que neste século há muitos que parecem virtuosos, e que o são efetivamente, mas que estão mais inclinados para uma vida tranquila e cômoda, do que para uma devoção árdua e sólida. A Igreja é como uma grande colheita que requer trabalhadores, mas trabalhadores que trabalhem. Não há nada tão de acordo com o evangelho como reunir, por um lado, luz e forças para a alma na oração, na leitura, no retiro, e por outro lado, tornar os homens participantes deste alimento espiritual. Isto é fazer o que fez Nosso Senhor, e depois dele, seus apóstolos; é unir o ofício de Marta com o de Maria[16]; é imitar as pombas, que come a metade da comida que toma, e logo depois põe o resto no bico de seus filhotes para alimentá-los. Isto é o que devemos fazer também nós e a maneira como devemos mostrar a Deus com obras que o amamos[17].

6. « Umas práticas burocráticas que impediriam nossa caminhada multiplicando nossas engrenagens ». As estruturas são necessárias e importantes, mas não podem sufocar o contato direto com os empobrecidos, a atenção pessoal, o cuidado transformador – tanto para aqueles que são auxiliados como para aquele que oferece ajuda -, próximos e amorosos com aqueles que sofrem. Em resumo: não somos um escritório burocrático, senão uma família de pessoas de fé que descobrem e servem a Jesus Cristo no Pobre.

Termina o parágrafo com uma frase que vale a pena destacar e refletir: “Deus se compraz sobretudo em abençoar o que é pequeno e imperceptível, a árvore na sua semente, o homem em seu berço, as boas obras na timidez de seus primórdios”.

Sugestões para reflexão pessoal e conversa em grupo:

  1. Podemos rever nossas atitudes e ações, pessoais e comunitárias, à luz dos seis pontos que Frederico Ozanam aponta como perigos que podem nos levar ao não cumprimento de nossa missão.
  2. Se tivéssemos que resumir em poucos itens nossa missão e nossas prioridades como seguidores de Vicente, Luísa, Frederico Ozanam etc. quais seriam?

Notas:

[1] Depois de uma parada em Sens para visitar seus amigos, o casal Francisco Lallier e Henriette Delporte, que acabavam de se tornar pais de seu primeiro filho, Henri.

[2] Os livros manuscritos da familia Ozanam são quatro. O primeiro está guardado nos “Archives Laporte” e os três restantes nos “Archives Ozanam”.

[3] Cf. Charles-Alphonse Ozanam, Vie de Frédéric Ozanam, París: Poussielgue, 1879, p. 357.

[4] Sua noiva Amélia continua morando em Lyon com sua família.

[5] A Igreja recorda Jesus Cristo, o Bom Pastor, no quarto domingo da Páscoa. O evangelho que se proclama na eucaristia é tirado do capítulo 10 de João: “Eu sou o Bom Pastor. O Bom Pastor dá a vida por suas ovelhas”.

[6] Na Regra original indica (artigo 45) que “as Assembleias gerais se celebram anualmente no dia 8 de dezembro, dia da Concepção da Santíssima Virgem; o primeiro domingo da quaresma; o domingo do Bom Pastor (aniversário da transladação das relíquias de São Vicente de Paulo), e no dia 19 de julho, festa do padroeiro”. Hoje em dia, a Família Vicentina celebra a transladação das relíquias de São Vicente no dia 26 de abril, e a festa de São Vicente de Paulo no dia 27 de setembro.

[7] Na capela da Casa Mãe da Congregação da Missão, localizada na Rue de Sèvres, 95, em Paris.

A capela que abriga o corpo do santo foi construída durante a Restauração – período que vai desde a derrota de Napoleão (1814) até a revolução de 1830 – para receber as relíquias de São Vicente de Paulo, transladadas em 1830 pelo bispo Quélen. O corpo do padre Vicente está localizado sobre o altar, e o acesso é feito por uma escada lateral.

[8] Que ele chamou de “meu evangelho”; ver SVP ES IX, p. 546.

[9] 1 Cor 12,4.

[10] João Paulo II, Christifideles Laici, § 24.

[11] Do latim devotiones, que significa dedicação, voto.

[12] Jn 15, 8.

[13] Cf. Mt 18, 10-14.

[14] “Todo nosso trabalho consiste em ação”.

[15] Cf. Ap, 14, 13.

[16] Cf. Lc 10, 25-37.

[17] SVP ES XI-4, p. 733.

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