Convidamos vocês a descobrirem Frederico Ozanam através de seus próprios escritos, cofundador da Sociedade de São Vicente de Paulo e um dos membros mais queridos da Família Vicentina (embora, ainda pouco conhecido).
Frederico Ozanam escreveu muito nos seus 40 anos de vida. Estes textos – que chegam até nós de um passado não muito distante – são reflexos da realidade familiar, social e eclesial vivida por seu autor que, em muitos aspectos, tem muita semelhança com a que vivemos atualmente, particularmente no que se refere à desigualdade e à injustiça que sofrem milhões de empobrecidos em nosso mundo.
Comentário:
Tempos difíceis foram vividos em Sorbonne, em meados da década de 1840. Alguns professores haviam manifestado publicamente sua fé católica nas cátedras, entre eles Ozanam e Lenormant[1] enquanto outros eram abertamente hostis a ela. O mesmo acontecia entre os estudantes: alguns a favor, muitos contra. Quando se colocou em questão o propósito do ensino de Frederico Ozanam na cátedra de Sorbonne – que no parecer de alguns, tratava mais de teologia do que de literatura estrangeira[2] – Frederico Ozanam manifestou publicamente seu posicionamento neste texto, que foi compilado por um jornal de sua cidade natal. Neste artigo, que reproduz sua profissão de fé, o jornalista acrescentou: “O Senhor Ozanam conseguiu se livrar, com muita dificuldade, daquela multidão que lhe aplaudiu de pé”.
Dias depois do texto ser publicado no jornal, Ozanam escrevia a seu amigo Lallier[3]:
Quanto a mim, mais uma vez assumi o peso de cada ano de meu magistério em meio às inquietudes que me causam as perturbações suscitadas contra o Senhor Lenormant em Sorbonne. Vi de perto e posso te assegurar que não se trata de uma insurreição das escolas, nem de um ímpio fanatismo de uma tropa de jovens exaltados. Trata-se de muito menos e, no entanto, é também muito mais. É um assunto suscitado sem paixão, mas calculado de forma deplorável, nas redações de alguns jornais revolucionários, a fim de manter o público descrente nesta espécie de febre em que tem estado nestes últimos anos, para criar novas dificuldades para o governo.
Como estas pessoas colocam, em si, toda a obstinação de um posicionamento já decidido, e o governo coloca, em si, toda a debilidade que costuma mostrar quando se trata de proteger crenças, é de se temer que a violência se renove, embora, como aconteceu da última vez, não passe de um grupo com mais de sessenta desordeiros, se voltarem dez vezes acabarão por fechar o curso.
Mas não acontecerá isso, pelo menos, sem protestos enérgicos, visto que a juventude cristã se mostrou mais firme que de costume neste assunto e isso, ao menos, será útil para acabar as fileiras e aguerrir os corações. Mas podeis imaginar a dor que me dá de ver um ensino tão honrado e benéfico ser ameaçado por tais intrigas e ser traído pela apatia dos que tem o dever de defender, neste caso como nós, a ordem pública.
Ah, meu amigo! Quanto mal se faz no mundo pela inconsequência e a timidez das pessoas de bem! Quanto à mim, farei todos meus esforços para que não se separe minha causa da do Senhor Lenormant; enquanto houver distúrbios em suas aulas não deixarei de assistir a elas, usarei toda minha influência sobre um certo número de jovens para recrutar audiência[4].
Frederico reconhece não ser teólogo[5]. Mas explica que, em sua cátedra de literatura estrangeira, não pode evitar falar de eminentes cristãos que contribuíram, ao longo de toda a história, para o crescimento da arte, da literatura e a civilização em geral. É para ele uma questão de consciência: não pode deixar de ser cristão em suas atividades profissionais, nem negar a ação da Igreja na história que ensinava; isso sim: “falando a verdade” e “com severa imparcialidade”.
Não é um fanático do tipo que não admite a menor crítica à Igreja: pelo contrário, reconhece que a Igreja, de fato, é formada por pessoas majoritariamente frágeis, pecadoras; mas, apesar de seus momentos mais obscuros, sente para com ela “piedade e amor”. A fé nos diz que Deus é quem guia a barca, e que esta não naufragará, apesar de nossa limitação e pecado.
Sugestões para reflexão pessoal e diálogo em grupo:
- Nós como vicentinos, como é que planejamos a educação para que seja um meio para promover os Pobres, para servir-lhes, para provocar a mudança sistêmica?
- O que significa a expressão “santa e pecadora”, referindo-se à Igreja?
- Como abordamos aqueles que tem ideias diferentes das nossas? Como provocar o diálogo com eles?
Notas:
[1] A história do Senhor Carlos Lenormant (1802–1859) é especialmente interessante: cf. Kathleen O’Meara, Federico Ozanam, profesor en la Sorbona: su vida y obra, capítulo XVI.
[2] Kathleen O’Meara conta a seguinte anedota: “Certa ocasião, nos turbulentos dias dos distúrbios contra Lenormant, quando a erudita Sorbonne transformou-se num campo de batalha, uma pessoa, querendo ser engenhosa, apagou as palavras “Literatura Estrangeira”, que estavam escritas depois do nome de Ozanam na placa da porta (do seu escritório), e escreveu sobre elas: “Teologia” (O’MEARA, capítulo XVI).
[3] François Lallier (1814–1886) nasceu em Joigny (França). Conheceu Ozanam na faculdade de direito, a partir do curso de 1831. Foi um dos fundadores da Sociedade de São Vicente de Paulo e um dos amigos mais íntimos de Ozanam. O casal Ozanam escolheu-o para ser o padrinho da pequena Maria, em 1845.
Em 1835, à pedido do presidente Bailly, Lallier redigiu a Regra da Sociedade de São Vicente de Paulo (que passou, desde então, por acréscimos necessários para o bom desenvolvimento da Sociedade, mas o conjunto permaneceu basicamente intacto em sua redação, desde 1835 até hoje em dia). Lallier realizou sua tarefa com a aplicação, a precisão dos termos e a sobriedade de expressão que eram o atributo deste magnífico jurista. Em 1837 foi nomeado secretário geral da Sociedade, até 1839, quando apresenta sua demissão e se muda para Sens. Ali casou-se com Henriette-Colombe Delporte (1815-1890), no dia 22 de abril de 1839. O casal teve quatro filhos, embora somente dois deles chegaram à idade adulta: Henri Lallier (1840-1863) e Paulo Lallier (1855-1886). No dia 07 de julho de 1839 foi nomeado juiz suplente de Sens. Jamais deixou o tribunal de Sens: em 1857 foi nomeado presidente do tribunal, cargo que ocupou até sua aposentadoria, em 1881.
Foi um católico liberal, sem filiação política, e colaborou com os jornais l’Université catholique e Revue européenne.
Em 1879, anos antes da celebração das “Bodas de Ouro” da Sociedade, o presidente geral Adolphe Baudon (1819-1888) encarregou Lallier que redigisse os fatos relacionados às origens da Sociedade. Preparou um primeiro esboço que submeteu a outros três membros fundadores ainda vivos: Auguste Letaillandier (1811–1885), Paul Lamache (1810–1892) e Jules Devaux (1811–1880), pedindo-lhes que retificassem ou completassem o que ele havia escrito. Esta colaboração culminou num folheto que foi publicado em 1882 sob o título: Origens da Sociedade de São Vicente de Paulo, segundo as recordações de seus primeiros membros.
Não se sabe muita coisa sobre a morte de Lallier, que aconteceu em Sens, no dia 23 de dezembro de 1886. Está enterrado no cemitério daquela pequena cidade.
[4] Carta a François Lallier, de 30 de dezembro de 1845.
[5] Embora tivesse um notável conhecimento sobre temas de religião e sabemos, pelos textos de sua esposa Amélia, que sempre que escrevia algum tema relacionado com a fé ou sobre a Igreja, pedia a aprovação do arcebispo de Paris.
Javier F. Chento
@javierchento
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