As portas servem para entrar ou para sair. Porque nos ensinaram que assim é e porque a experiência no-lo diz.
O que é curioso é que as portas servem simultaneamente para entrar e para sair. Entramos num espaço e, ao mesmo tempo, saímos, pois deixamos de estar no espaço de onde viemos. O que estava fora da porta passa a estar dentro. Fora fica o que estava dentro. Cruzar a porta implica fazer uma escolha. É, por isso, importante perceber de que lado de algumas portas queremos estar e quais as entradas e saídas que queremos fazer.
A porta é um dispositivo – provavelmente uma das invenções mais antigas da humanidade – que assinala o ponto em que a parede se torna transponível, sendo a parede “uma espécie de distância concentrada” (Manuel Tainha, Textos de arquitectura, 2006). Certamente que a reflexão sobre as portas físicas das igrejas, enquanto pórtico de acesso, e sobre a expressão do espaço de transição na arquitectura em relação com a fé merece uma reflexão dedicada, mas por agora terá de ficar para um capítulo adiante. O que nesta reflexão se pretende sublinhar é o papel da Igreja, enquanto comunidade, e do corpo, existente num espaço e num tempo, como entidades que caminham juntas e cruzam portas para entrar na realidade de Deus.
No caso da relação com Deus, é importante inclusive garantir que ocasionalmente se entra em espaços de suspensão do tempo, de entrada em si próprio e de saída de si mesmo para ir ao encontro dos outros com novo fôlego. Uma igreja é também – ou poderia (deveria?) ser – uma porta do tempo, permitindo a passagem para um lugar atemporal.
Na Bíblia, o Antigo Testamento é uma longa e elaborada porta para o conhecimento de Deus, uma porta que abarca tão distintos estilos de escrita, manifestações de Deus e etapas da História. É um compêndio de tentativas de compreensão de um mundo terreno cujos desígnios raramente são evidentes.
“Ó portas, levantai os vossos umbrais!
Alteai-vos, pórticos eternos,
que vai entrar o rei glorioso.”
(Sl 24, 9)
A porta do Antigo Testamento é, em parte, uma porta triunfal, a porta do rei glorioso (o “herói na batalha” e “Senhor do universo”). Jesus, nascido para o mundo dos Homens através de Maria, a Porta do Céu (expressão tão bela, utilizada por exemplo nos hinos Alma Redemptoris Mater e Ave maris stella) vem inaugurar uma série de novas portas. Estas são já portas diferentes: são as portas de serviço, as portas das traseiras. Não as que são ricamente ornamentadas, as portas nobres, mas aquelas que ficam escondidas e que parecem indicar tudo menos o lugar óbvio.
A porta da atenção
“Eu sou a porta das ovelhas. (…) Se alguém entrar por mim estará salvo; há-de entrar e sair e achará pastagem.” (Jo 10, 7-9)
Nesta porta encontramos Jesus como aquele que cuida, com infinita atenção a cada um, a cada pormenor, a cada dracma, a cada ovelha perdida. É um convite que, no desenrolar dos Evangelhos, acabamos por perceber também como vocação nossa, a necessidade da comunidade, de fazer caminho com os outros, de alargarmos a nossa atenção ao cuidado do sentido comunitário, não da individualidade.
A porta do acolhimento
“Pedi, e ser-vos-á dado; procurai, e encontrareis; batei, e hão-de abrir-vos.” (Mt 7,7)
Uma porta fechada que é convidada a abrir-se. Algo tão difícil hoje, com incertezas, inseguranças, notícias na comunicação social, circuitos de vigilância, condomínios fechados, controlos de acessos. Mas, se pusermos a História do mundo em perspectiva, talvez estejamos, no contexto europeu – apesar de tudo – numa era de grande equilíbrio e facilidade de convivência, em comparação com tempos tumultuosos que mancharam tantos séculos atrás de nós. Talvez esse olhar ajude a ver que nem tudo é tão difícil como parece. Como responder a este outro convite, o de transformar a porta num lugar aberto e permeável que permita a comunicação e entreajuda, em vez de uma extensão opaca da parede envolvente?
A porta do serviço
“Entrai pela porta estreita; (…) Como é estreita a porta e quão apertado é o caminho que conduz à vida” (Mt 7, 13-14)
Esta é a porta mais difícil para as ambições e para os grandes planos; há sempre uma porta no caminho, nem sempre evidente, mas que espreita, estreita. Uma porta onde muitas coisas da vida não cabem, nem sequer atravessadas ou desmontadas em peças. E não dá para pôr essas mesmas coisas a entrar pela janela! A porta estreita é mesmo o único caminho e para isso é necessário escolher bem o que deixar na antecâmara. É esse um dos paradoxos da arquitectura de Deus, o de fazer caber o enorme no buraco de uma agulha e de impedir a passagem de um grão de mostarda pela avenida mais larga que conheçamos. É uma arquitectura a estudar e perceber melhor cada dia.
Estamos perante três portas diferentes, às quais, no entanto, falta agora um pormenor, algo que habitualmente fica relegado apenas para um desenho de detalhe (ou para os desenhos das crianças): as portas têm maçanetas. É algo que, à escala da fachada, não deveria em teoria ser representado – mas é por corresponder a um movimento, a um gesto ligado intimamente à casa, que se torna presente no imaginário das crianças, como propõe Bachelard. Na sequência deste princípio, sugere que a ideia da maçaneta corresponde sobretudo ao abrir da porta, não ao fechar – pois o fechar seria melhor associado à chave: “No reino dos valores, a chave fecha mais do que abre. A maçaneta abre mais do que fecha. E o gesto que fecha é sempre mais sucinto, mais forte, mais breve que o gesto que abre.” (Gaston Bachelard, La poétique de l’espace, Cap. II, Sec. IX)
As portas que vamos encontrando ao longo da vida não correspondem sempre aos caminhos certos. Há muitas portas. Há muitos caminhos que se bifurcam e se cruzam. Mas se o discernimento for cuidado, este movimento de entrada, de rodar a maçaneta e passar para outro espaço, pode corresponder a um caminho renovado. Como nos calendários de Advento, a vida é uma descoberta de incógnitas por trás de pequenas portas.
Chegou a altura de abrir cada dia deste tempo de preparação para o Natal com a certeza de que se for vivido em plenitude, pode também ser a abertura de grandes portas, a selecção das maçanetas que interessa rodar. Este exercício pode implicar abrir portas só para perceber que devem ser fechadas logo de imediato, por não se terem aberto para os espaços certos; faz parte do caminho.
A porta aberta, totalmente aberta
“Vê, coloquei diante de ti uma porta aberta, que ninguém pode fechar.” (Ap 3,8)
Apesar das três portas de que falámos acima, que precisamos de abrir e cruzar vezes sem conta, a porta principal está sempre aberta, num acolhimento misericordioso de quem conhece bem as dificuldades de escolher as portas certas.
“Abriu uma porta. Uma frescura de campos entrava pelas janelas abertas; e entreviam-se árvores de quintal, um verde de terrenos vagos, depois lá em baixo o branco de casarias rebrilhando ao sol” (Eça de Queiroz, Os Maias)
Abramos as portas que valem a pena! É necessário para que entre essa frescura do novo espaço, da renovação – e o Advento é uma excelente oportunidade para o fazer.
João Valério
Fonte: https://www.padresvicentinos.net/
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