1. Carisma Vicentino
Completam-se em 2017 quatro séculos após S. Vicente de Paulo, animado de zelo apostólico, ter recebido a inspiração celeste que o chamava a fundar uma comunidade de missionários devotados à evangelização dos pobres e à criteriosa formação espiritual, doutrinal e pastoral do clero. Graças à fecundidade apostólica dessa intuição fundacional viriam a nascer a Congregação da Missão, a Companhia das Filhas da Caridade e a plêiade de instituições de serviço fraterno aos mais pobres e marginalizados, de que as Conferências Vicentinas são hoje uma das expressões sociais mais conhecidas. Celebra-se igualmente no ano de 2017 o terceiro centenário da entrada em Portugal do carisma vicentino trazido pelo instituto da Congregação da Missão.
A Conferência Episcopal Portuguesa congratula-se com a feliz efeméride e associa-se à ação de graças e louvor que toda a Família Vicentina eleva ao Senhor nesta data comemorativa. Com efeito, as duas datas evocam a missão eclesial de S. Vicente de Paulo e do carisma que o inspirou a favor dos pobres, da reforma do clero e da caridade que ele soube converter em inúmeros projetos sociais. E se altas figuras da aristocracia francesa de então encontraram nele conselho e assistência espiritual, foram os pobres do mundo rural e das cidades que mais o inquietaram, estimulando-o à prática das obras de misericórdia espirituais e corporais. Escolheu, por isso, servir pastoralmente a Igreja como pároco numa humilde aldeia rural e, pouco a pouco, foi descobrindo que a verdadeira dimensão da pobreza tanto diz respeito à falta de pão como à necessidade de uma fé viva e esclarecida. Daí a urgência que sentiu de promover três linhas de ação principais: organizar as caridades, grupos de cristãos leigos dedicados a servir os pobres; efetuar missões populares que despertem e eduquem na fé o povo humilde dos campos; dinamizar a formação cultural e pastoral do clero através de conferências e da organização dos seminários.
Da vasta obra caritativa do fundador da Congregação da Missão e das Filhas da Caridade, lembremos aqui duas lições notáveis. A guerra da Fronda, que devastou com os seus tentáculos de violência várias regiões da França, espalhando fome, doença e toda a espécie de misérias, gerou multidões de desalojados que, fugindo das frentes de batalha, acorriam às cidades. Em vez de melhorarem a situação, tornavam-na muitas vezes mais grave ainda. Com imaginação e empenho, logo cuidou de pôr em ação um projeto destinado a conter a desumanidade dessas migrações. Passou a enviar, por diversos caminhos, alimentos e outros bens de primeira necessidade, evitando que fossem os pobres a fazer longas caminhadas, tornando assim a vida do povo menos sofrida. Esta capacidade de mobilizar recursos materiais e humanos de forma bem organizada e, por isso, mais eficaz, descobriu-a ele muito cedo.
Alertado, quando se preparava para celebrar a missa dominical, para a existência, em lugar remoto, de uma família cujos membros estavam todos gravemente doentes, apelou do púlpito ao coração dos ouvintes para levarem ajuda a tão dolorosa situação. A resposta fraterna dos presentes foi generosa e rápida. Mas como assegurar continuidade a esse gesto episódico de caridade? Vicente de Paulo percebeu então, por experiência, que caridade sem organização pode resultar em falta de caridade. E tornou-se mestre na arte de organizar e gerir as caridades, sem jamais esquecer que a caridade de Cristo deve animar sempre a dedicação e serviço dos pobres. Ação social, evangelização, formação do clero, eis três campos fundamentais nos quais trabalhou S. Vicente de Paulo e em que continua vivo o carisma que imprimiu nas obras que fundou. Foi, por isso, com justiça e verdade, chamado por S. João Paulo II “homem de ação e de oração, de organização e de imaginação, de direção firme e de humildade, homem de ontem e de hoje” (Alocução à Assembleia Geral da Congregação da Missão, em 1986).
2. Presença em Portugal
Os filhos de S. Vicente de Paulo entraram em Portugal em começos do século XVIII. Foi apoiado num breve de Clemente XI que autorizava a erigir a Congregação da Missão no reino de Portugal que o padre José Gomes da Costa (1667-1725), natural de Torre de Moncorvo, e superior da casa de Monte Célio, em Roma, onde tinha ingressado na congregação vicentina, chegou a Lisboa, em novembro de 1716, para dar início à fundação. Tem a data de 20 de maio de 1717 o documento em que o Procurador do Supremo Tribunal da Justiça do Reino concede existência legal à Congregação da Missão. A Província de Roma, donde vinha o fundador, enviou de imediato quatro sacerdotes e um irmão para formarem a primeira comunidade. E, em 1720, era fundada a primeira casa da Missão, na quinta de Rilhafoles, em Lisboa, casa central donde irradiará intensa e frutuosa atividade votada à formação do clero e às missões populares. Até 1834, a vida da Congregação desenvolveu-se à volta de três grandes centros: Lisboa (casa de Rilhafoles); Braga (casa da Cruz) e Évora (Seminário). A par desta ação missionária dentro do país, ocorreu também intensa atividade apostólica no Oriente (seminários de Goa e Macau, missões em Pequim, Nanquim e Malaca), e ainda no Brasil, com a obra missionária do padre António Ferreira Viçoso, que será depois sétimo bispo de Mariana.
Após a extinção em 1834, a vida da Congregação da Missão começou a ser restabelecida a partir de 1857. Durante este segundo período, que se prolongou até à implantação da República, em 1910, as atividades principais da Congregação da Missão foram as missões populares, a formação da juventude em colégios, a fundação e acompanhamento de conferências vicentinas e associações religiosas, nomeadamente na Igreja de S. Luís dos Franceses, em Lisboa, na residência de Santa Quitéria, Felgueiras, e no Funchal, Madeira, onde, além da capelania do Hospício Princesa Dona Amélia, assumiram a direção do Seminário Maior da Diocese. Este surto de crescimento foi bruscamente interrompido em 1910, ano em que foram assassinados dois virtuosos missionários, os padres Alfredo Fragues, Provincial, e Bernardino Barros Gomes, ilustre homem de ciência.
Outra vez renascida das cinzas em 1927, os esforços dos responsáveis da Província Portuguesa da Congregação da Missão concentraram-se na organização das comunidades e respetivas obras, e ainda na formação de novos missionários. Com essa finalidade, ergueram vários Seminários: Pombeiro e Oleiros (Felgueiras) e, mais tarde, Mafra e Braga. Novas condições e exigências de formação académica e pedagógica obrigaram à criação de Lares de Estudantes no Ameal, Porto, e na Luz, em Lisboa. Nova fase da Missão Ad Gentes teve início em 1940, com a fundação de comunidades missionárias em Moçambique. Na década de 1960, metade dos seus membros, quase sempre os mais jovens, rumava a Moçambique. Esta situação exigiu a criação de uma estrutura jurídica mais ágil e bem inserida no terreno moçambicano. Nascia, assim, em 1965, a Vice-Província. Além da presença missionária junto das populações autóctones, assumiram, na linha do carisma do Santo Fundador e em condições de grande exigência e responsabilidade eclesial, a obra dos seminários. Dirigiram a formação do clero moçambicano em três seminários. Por estas instituições de formação passou a maior parte do clero local, bem como muitos dos bispos desse país.
Além de obras de apostolado missionário já existentes em Chaves, Viseu, Felgueiras, Lisboa e Funchal, o regresso de alguns missionários, após a independência de Moçambique, permitiu que fossem assumidas obras diocesanas, designadamente paróquias nas dioceses de Santarém, Beja e Portalegre-Castelo Branco. Voltou, depois, com renovada entrega e dinâmica evangelizadora a tradicional obra das missões populares. De norte a sul, equipas de Padres, Filhas da Caridade e Leigos, preparadas para anunciar a mensagem do Evangelho em novos contextos sociais e culturais, percorreram inúmeras paróquias, a convite dos respetivos bispos e párocos. Entre essas renovadas iniciativas de evangelização contam-se as Comunidades Familiares de Caridade, pequenos grupos de agentes pastorais disponíveis para assegurar continuidade à evangelização realizada nas missões populares.
3. Desafios do carisma vicentino para o nosso tempo
O coração do carisma vicentino é o exercício da caridade cujo modelo foi dado pelo divino Mestre. S. Vicente de Paulo resumiu as virtudes do Filho de Deus a duas principais: união com o Pai e caridade para com os homens. A atualização deste carisma passa hoje pelo compromisso com os mais pobres, que de todos os cristãos exige ações concretas que, em espírito de missão e de serviço à Igreja, se hão de traduzir em obras mais do que em palavras. Urge, antes de mais, revisitar as origens e divulgar o pensamento e a obra do santo da caridade como imperativo de programas pastorais.
Este “vinho novo” do carisma terá, com certeza, consequências na atividade pastoral e na qualidade do serviço à Igreja em geral. Importa também perceber que as instituições estão chamadas a ser a expressão encarnada do carisma. Mas as instituições vivem mergulhadas na história de sociedades em acelerada transformação. É, por isso, necessário escutar os sinais dos tempos e discernir, nas situações difíceis e tão frequentemente desumanas, o que ao apelo dos pobres tem a dizer com obras de misericórdia o carisma vicentino. E há de ter a coragem de reajustar estruturas de outros tempos, como se reajustam as roupas que vestem um corpo que cresce e se transforma.
Neste processo de escuta e discernimento em ordem à tomada de decisão sobre a participação nas estruturas eclesiais, a visão profética de aggiornamento de S. João XXIII continua de plena atualidade. Abrir horizontes, reavivar o espírito missionário e estar disponível para ir mais longe, é próprio de homens chamados por Deus a continuar a obra salvífica de seu Filho. Sem otimismos ingénuos, vivemos tempos de abertura a projetos novos, reconhecendo que é sempre possível fazer- se ao largo e participar em iniciativas eclesiais que vão para além da nossa realidade geográfica. No mundo globalizado de hoje, as fronteiras são sobretudo a estreiteza do horizonte que acomodamos nas nossas mentes e que nos podem impedir de chegar mais longe.
O carisma vicentino é portador de um código genético de conteúdo espiritual que se transmite, de geração em geração, a todos os ramos da família. Esse núcleo de graça, que o Espírito anima, faz com que ela viva em saudável e contínua “inconformidade com as coisas do mundo presente” (Rm 12,12), num processo de busca constante.
Enquanto dom celeste, esse núcleo de graça tem a marca da intemporalidade e apela a uma renovação permanente. Com a coragem dos profetas, a visão dos místicos, o zelo dos missionários, a simplicidade dos homens de coração puro, e impelidos pela caridade, podem os filhos espirituais de S. Vicente de Paulo continuar a fazer o que o Filho de Deus fazia na terra. Chamados para evangelizar os pobres, têm como missão anunciar-lhes a paz e a justiça que vem com o Reino de Deus. Aos homens que, neste mundo de crise e desamparo, continuam marcados pelo infortúnio, como desempregados, refugiados, excluídos e vítimas de cada vez mais refinadas formas de pobreza, devem dar razões à esperança de um mundo mais justo e fraterno.
A Conferência Episcopal exorta, em Cristo, os herdeiros do carisma de S. Vicente de Paulo, em Portugal, a sentirem-se comprometidos com todas as situações que degradam a dignidade do homem. À luz da mensagem de misericórdia de que dá testemunho o pontificado do Papa Francisco, crentes e não crentes estão agora mais atentos à desumanidade das periferias humanas e existenciais. Caminha ao encontro dessa mensagem de amor misericordioso o carisma vicentino, que deve colocar o mundo dos pobres no centro de atenção de todos os cristãos e homens de boa vontade.
Fátima, 10 de novembro de 2016
Espetacular este nota. Me sentido mais motivada a seguir a missão vicentina.