Qual o nosso futuro?

Escrito por Irmã Françoise Petit. Lido por Irmã Alessandra Sousa Oliveira

Françoise Petit

 “Sucederá, nos dias que hão de vir, que o monte do templo do Senhor se há de erguer no cimo das montanhas e se elevará no alto das colinas. Ali afluirão todas as nações e muitos povos acorrerão, dizendo: ‘Vinde, subamos ao monte do Senhor, ao templo do Deus de Jacob. Ele nos ensinará os seus caminhos e nós andaremos pelas suas veredas. De Sião há de vir a lei e de Jerusalém a palavra do Senhor’. Ele será juiz no meio das nações e árbitro de povos numerosos. Converterão as espadas em relhas de arado e as lanças em foices. Não levantará a espada nação contra nação, nem mais se hão de preparar para a guerra. Vinde, ó casa de Jacob, caminhemos à luz do Senhor” (Is 2,2-5).

Alessandra Sousa Oliveira

Poderíamos imaginar uma melhor previsão para o futuro de Jerusalém? Como Família Vicentina, qual é o nosso lugar na construção do amanhã?

Na Bíblia, fala-se com frequência sobre o futuro – o mundo que há de vir, o século vindouro, a Salvação futura, a vida eterna… E quando se trata de futuro, não é amanhã. O futuro começa agora e nos questiona.

Pierre Ganne, um Jesuíta, escreveu assim: “O futuro depende da decisão de amar, com tudo o que ela implica e tudo o que ela exige” (O pobre o profeta – Le pauvre et le profete, Pierre Ganne, pág. 32).

São Vicente tomou esta decisão de amar e servir. Seguindo o seu exemplo e juntos, tomemos esta decisão: “caminhemos à luz do Senhor” (Is 2,5), pois o futuro depende da nossa resposta de hoje.

Somos enviados como discípulos-missionários, ao encontro de todos e todas que são confrontados às fragilidades do corpo, do espírito, da alma. Estes sofrimentos nos comovem profundamente e, em todo mundo, associações, equipes, Comunidades, grupos se mobilizam para oferecer cuidados, uma proximidade atenciosa e fraterna, além do acompanhamento em vista da reconstrução pessoal e da autonomia, apoio material, psicológico e espiritual … “do homem todo e de todo o homem” (Paulo VI).

“Tive fome.. tive sede…era estrangeiro… estava nu… doente.. preso…”

 Vejamos três pontos para consolidar nossa maneira de servir hoje, enquanto membros da Família Vicentina, antes de apresentar na conclusão alguns convites simples, como participação, de acordo com as nossas possibilidades e com outras pessoas, para construir um futuro mais humano, onde “não haverá danos nem mortes por todo o meu santo monte: a terra estará tão repleta do saber do Senhor quanto as águas que cobrem o mar” (Is 11,9).

  • Uma convicção fundamental: os pobres estão no centro de nossas vidas
  • Um chamado: superar as barreiras
  • Uma atitude evangélica: o acolhimento recíproco.
  1. Uma convicção fundamental: os pobres estão no centro de nossas vidas.

 Permitam-me, como Filha da Caridade, começar com uma frase das nossas Constituições, nosso livro de vida: “as Irmãs contemplam e encontram Cristo no coração e na vida dos pobres… Por um olhar de fé veem Cristo nos pobres e os pobres em Cristo” (C.10).

O pobre está no centro de nossa vida, no coração. O coração compreendido, não somente como um “a sede” dos sentimentos, mas como o centro vital, lugar da razão, dos nossos desejos, da nossa ação, da nossa fé. De fato, os pobres habitam o cotidiano da nossa vida missionária, da nossa vida fraterna, da nossa oração. Toda nossa vida se organiza em função do serviço.

O encontro com cada pessoa ferida é o local do nosso encontro com Cristo. Este encontro nos abre, nos transforma, nos evangeliza, pois, trata-se de uma verdadeira experiência espiritual enraizada na partilha de vida com os mais vulneráveis.

Trata-se de uma história de encontros: encontro entre Deus e nós, os pobres e nós, e entre todos nós. Não seria esta uma maneira de entrar na permutação trinitária, mistério de amor por excelência? Amor encarnado?

Nosso Papa Francisco insiste e repete em sua mensagem para o primeiro dia mundial dos Pobres: “A pobreza tem o rosto de mulheres, homens e crianças explorados para vis interesses, espezinhados pelas lógicas perversas do poder e do dinheiro”.

 Contrariamente a estas lógicas, Jesus, através do lava-pés, nos indica outro caminho: trata-se de cuidar integralmente da pessoa, com gestos simples de ternura e de atenção… Os membros da Família Vicentina, seja qual for o ramo, sabem que todos os gestos de proximidade, de solidariedade e fraternidade, iluminam a humanidade e participam de sua cura.

Pessoalmente, não temos nada a oferecer senão nossas fragilidades. Unidos, e graças às nossas diferenças, são todas as nossas competências, nossas energias, nossas generosidades que colocamos a serviço dos nossos irmãos e irmãs: nos hospitais, dispensários, serviços sociais, associações… mas também nos lugares de escuta, de presença e acompanhamento, como nas visitas domiciliares.

Qual é a maior necessidade? Escutemos este clamor: (oração de um pobre)

“Estou sozinha, vivo frequentemente triste. Rezo. Ninguém fala comigo, ninguém olha para mim, não tenho ninguém com quem falar. Desperte, não me deixe só, não me abandone!” (Partilhar a Palavra de Deus com os pobres – Partager la Parole de Dieu avec les pauves – Gwennola Rimbaut, pág. 121).

Nosso Papa Francisco nos desperta e nos interpela: “Não pensemos nos pobres apenas como destinatários duma boa obra de voluntariado, que se pratica uma vez por semana… Estas experiências, embora válidas… deveriam abrir a um verdadeiro encontro com os pobres e dar lugar a uma partilha que se torne estilo de vida”.

“Uma partilha que se torne estilo de vida”… segundo nossa própria vocação; como podemos viver com mais coerência esta convicção de que os pobres estão no centro de nossas vidas? Não seria esta, entre outras, a exigência de uma mudança de estilo de vida ao qual somos chamados? Uma mudança de estilo de vida fundamentada no princípio do bem comum que exige partilha, simplicidade, responsabilidade.

Somos chamados a mudar de comportamento, especialmente em nossa maneira de consumir, para melhor viver juntos, para melhor lutar pela paz e a justiça, e para estar cada vez mais próximos dos mais vulneráveis, para que eles realmente estejam no coração de nossa vida e da nossa fé. Tudo está interrelacionado.

O que pensa o Padre Vicente a este respeito ? “Devemos passar do amor afetivo ao amor efetivo, que é o exercício das obras de caridade, o serviço dos pobres, empreendido com alegria, coragem, constância e amor” (Conf. de 09 de fevereiro de 1653, pág. 389).

  1. Um chamado: superar as barreiras

Vejamos novamente a mensagem para o I Dia Mundial dos Pobres: “Benditas as mãos que se abrem para acolher os pobres e socorrê-los: são mãos que levam esperança. Benditas as mãos que superam toda a barreira de cultura, religião e nacionalidade, derramando óleo de consolação nas chagas da humanidade. Benditas as mãos que se abrem sem pedir nada em troca, sem “se” nem “mas”, nem “talvez”: são mãos que fazem descer sobre os irmãos a bênção de Deus” (Papa Francisco).

O Papa Francisco nos oferece este roteiro para nos convidar a dar continuidade ao que todos nós desejamos colocar em prática em prol de nossos irmãos e irmãs, os migrantes, que chegam diariamente em terras que lhes são desconhecidas. Abrir, acolher, socorrer, superar as barreiras de todo tipo, … acolhida incondicional… Seria assim tão fácil ? Seria assim tão óbvio?

O chamado a “superar as barreiras” da cultura, da língua, da religião, da nacionalidade certamente ressoa em cada um de nós. Conhecemos bem todos os obstáculos, que existem em nós, entre nós e em relação ao outro, que é diferente.

Em nós, são os medos, especialmente o de ser demasiadamente incomodado, medo dos nossos próprios limites, medo de ser invadido pelos sofrimentos do outro. O acolhimento do estrangeiro pode provocar sentimentos mesclados de alegria, de angústia, de desconfiança. Até onde vai o nosso acolhimento? “Sinta-se em sua própria casa!”. Certamente, fizemos este convite, mas de que temos medo? Quebremos estas barreiras!

Entre nós, entre os ramos da Família Vicentina: temos tantos pontos comuns, mas também, muitas diversidades. Como nós os aceitamos? Como fazemos deles riquezas extraordinárias e complementares para o bem comum, para os mais pobres? Identifiquemos eventuais obstáculos e quebremos estas barreiras!

Diante do outro diferente: “Era estrangeiro e me acolhestes”. O outro diferente pode incomodar profundamente. Ele vem de fora, é desconhecido, tem outras referências, outros costumes de vida, outras maneiras de viver as relações… expectativas, muitas expectativas. O acolhimento é um caminho que deve ser realizado em conjunto, o outro e eu, o outro e nós, todos nós juntos. Portanto, avante, quebremos as barreiras!

Somos todos estrangeiros uns para os outros e somente haverá encontro e verdadeiro acolhimento se esta realidade for reconhecida e aceita. Amar o outro em sua diferença é a única possibilidade de amar verdadeiramente e perdurar neste amor. Este é nosso valor comum, nossa fé, o Evangelho em ação.

“Um mundo novo surge cada vez que nos arriscamos a nos transformar em terra de asilo para os mais vulneráveis” (Véronique Margron – A Palavra bem próxima do teu coração – La Parole tout près de ton cœur, pág. 38)

Peçamos ao Senhor que nos ajude a superar todas as barreiras com esta oração do Papa Francisco, na ilha de Lesbos em 2016:

“Dai inspiração a todos nós, nações, comunidades e indivíduos, para reconhecer que, quantos atingem as nossas costas, são nossos irmãos e irmãs. Ajudai-nos a partilhar com eles as bênçãos que recebemos das vossas mãos e a reconhecer que juntos, como uma única família humana, somos todos migrantes, viajantes de esperança rumo a Vós, que sois a nossa verdadeira casa, onde todas as lágrimas serão enxugadas, onde estaremos na paz, seguros no vosso abraço”.

 O que pensa o Padre Vicente a este respeito? “Como ! Ser cristão, ver o irmão aflito e não chorar com ele, e não sofrer com ele! É não ter caridade. É ser cristão na aparência. É não ter humanidade..” (SV, XII, 30 de maio de 1659, pág. 276).

  1. Uma atitude evangélica: o acolhimento recíproco

Deus se fez homem, nosso irmão. Ele não somente olhou para nós, como habitou entre nós, frente a frente, para nos falar, nos escutar, para nos levar aos seus irmãos e irmãs, para nos conduzir ao nosso Pai. Ele nos deu tudo e, ao mesmo tempo, não quis estar e fazer sem nós: “Pai, aqueles que me deste, quero que estejam comigo onde eu estiver” (Jo 17, 24).

E quanto a nós ? Desejamos dar e, realmente damos com generosidade, mas, o que seria de nós sem os nossos irmãos e irmãs, os pobres? O que eles nos ensinam?

Nosso Papa Francisco utiliza uma expressão muito querida por São Vicente: “eles poderão ser nossos mestres, que nos ajudam a viver a fé de maneira mais coerente”.

 No último mês de maio, durante a celebração do aniversário de 50 anos da criação da Diocese do Val d’Oise, na França, as pessoas “mais vulneráveis” foram convidadas a distribuir um exemplar do Evangelho de São Lucas e a participar das celebrações.

Gostaria de compartilhar com todos, três de suas expressões:

“Em primeiro lugar, a alegria de ter sido chamado a esta bela missão! Quando me pediram para ajudar a distribuir os Evangelhos, imediatamente eu disse ‘sim’ (…) Aceitaria, mesmo se fosse para fazê-lo pela manhã bem cedo! Porém, rapidamente, percebi que não era um serviço que me pediam, era um presente que estavam me oferecendo! Fomos escolhidos, nós, os mais vulneráveis de Val d’Oise! Somos nós que levamos a Boa Nova às pessoas de bem!”.

 “Gostei muito quando li a passagem onde Jesus falava na Igreja e dizia que o Espírito de Deus estava sobre Ele e viera para levar a Boa Nova aos pobres. Então pensei, quando fomos batizados, nós também recebemos o Espírito de Deus e, quando chegamos com o Evangelho, a exemplo de Jesus, também levamos a Boa Nova aos pobres. Somos pobres, mas Jesus precisa de nós para levar também o Evangelho aos pobres”.

 “O Padre disse que rezaria por mim e pediu-me para rezar por ele! Você tem ideia do que isso significa? Ele conta com a minha oração. É óbvio, que eu não esqueci, sou obrigado a rezar por ele, pois ele conta comigo!”

Então, quem dá e quem recebe?

Perguntemo-nos e escutemos esse chamado a viver com o coração aberto e com autenticidade, o chamado para viver, juntos, uma colaboração simples e humilde, onde podemos caminhar em direção a um novo futuro, pois, assim nos fala o Senhor:

 “Eis que farei correr para ela a paz como um rio e a glória das nações como torrente transbordante. Sereis amamentados, carregados ao colo e acariciados sobre os joelhos. Como uma mãe que acaricia o filho, assim eu vos consolarei; sim, em Jerusalém sereis consolados. Tudo isso haveis de ver e o vosso coração exultará, e o vosso vigor se renovará como a relva do campo. A mão do Senhor se manifestará em favor de seus servos” (Is 66,12-14c).

Sim, realmente, Senhor, “somos todos, obras de tuas mãos (Is 64,7), irmãos e irmãs em Jesus Cristo, que se assemelham na sede de serem reconhecidos, de serem amados.

Por esta razão, nossos diferentes compromissos nos levam a colocar com entusiasmo todas as nossas forças no dom de nós mesmos para responder ao clamor dos pobres, através de gestos concretos de solidariedade, de fraternidade; isto exige que privilegiemos a dimensão da partilha, da participação e do acolhimento recíproco.

Ninguém é tão pobre que não tenha nada para partilhar” (Dom Bernard Housset – mensagem final do encontro Diaconia 2013).

Dar e receber pode se tornar uma maneira de ser, uma maneira de viver em comunhão para “cuidar da casa comum”, a fim de que o Reino de Deus venha agora. É um sinal de fraternidade evangélica que evidencia a mesma dignidade de filhos de Deus.

O que pensa o Padre Vicente a este respeito? “Deveis tratar os pobres com grande doçura e respeito: com doçura pensando que (eles) vos devem abrir o Céu, pois têm essa facilidade” (SV, conf. de 25 de novembro de 1659, pág. 889).

Conclusão

Parece-me importante repetir que, em todos os ramos, temos uma sensibilidade particular muito forte quanto à dimensão do cuidado. Sabemos que se trata de considerar a pessoa em todas as suas dimensões, no sentido da verdadeira caridade, tal como é compreendida pela Igreja e por nossa Família.

Vou ler um curto parágrafo de um artigo do Padre Thomasset (Jesuíta no Centro Sèvres de Paris), que associa a noção de “cuidar” à dimensão da caridade:

“Esta palavra “caridade” deve ser compreendida tanto como uma preocupação para atender às necessidades, mas também como a necessidade de manifestar a todos o amor com o qual Deus nos ama. A caridade é o amor de Deus em ação, a expressão da fé Naquele que, como o bom Samaritano, veio em auxílio da humanidade ferida, cuidou dela e a levou a pousada da reconciliação e do descanso”(Christus n°234, abril de 2012, pág 194).

A caridade é uma dimensão totalmente relacionada a todas as nossas ações, nossos pensamentos, nossa espiritualidade, a espiritualidade de São Vicente. O único desafio que eu ousaria expressar seria talvez este: dedicar tempo, nos diferentes lugares de encontro, para aprofundar nossa maneira de ver e de viver a caridade, a mesma recebida do Cristo.

Pediram-me para apresentar desafios à toda a Família Vicentina. Renunciei a este desafio, pois somos uma Família numerosa com muitos ramos e ramificações em tantos contextos diferentes, com histórias diferentes, que torna-se arriscado pormenorizar o concreto.

Tentei na realidade destacar sete convites que retomam os pontos essenciais abordados, ou que são suas consequências lógicas.

Talvez, eles possam ser aprofundados e sobretudo reforçados na prática, nos seus lugares de missão e de vida. Reforçados, pois é evidente que estes convites não são novos, mas, nós somos chamados, como filhos e filhas de São Vicente, a um “algo mais”:

  • Integrar cada vez mais as pessoas em situação de pobreza nos projetos, na realização destes e na avaliação. Creiamos que o Reino de Deus lhes pertence.
  • Viver a fraternidade com nossos irmãos e irmãs, os mais pobres. Criemos até a amizade, deixemo-nos evangelizar por eles e compartilhemos a Palavra de Deus.
  • Aprender a conhecer melhor os diferentes ramos. Fiquemos felizes por nos enriquecer mutuamente e trabalhemos ainda mais unidos, lá onde estamos presentes.
  • Prosseguir com convicção a formação contínua dentro dos diferentes ramos. Aprofundemos o pensamento de São Vicente à luz do Evangelho e da Doutrina Social da Igreja.
  • Responder com dinamismo aos apelos dos excluídos, que nos levam a tomar iniciativas em favor da paz e da justiça. Comprometamo-nos simplesmente, com nossos irmãos e irmãs que sofrem.
  • Converter nossos comportamentos na utilização dos bens comuns e dos recursos da terra. Sejamos convictos que o futuro depende de nós, hoje.
  • Conservar a simplicidade e a humildade tão queridas por São Vicente, para que nossos encontros cotidianos sejam realizados com respeito, mansidão e compaixão. Vivamos sempre mais do Evangelho!

Isaías nos acompanha desde o início e nos mostra, o quanto o futuro depende de nós hoje. Então, vamos concluir com ele, porque…

Se colocarmos os pobres no centro de nossas vidas, se superarmos as barreiras, se vivermos o acolhimento recíproco, então..

 “ …Tua lua brilhará nas trevas, a escuridão será para ti como a claridade do meio-dia. O Senhor será teu guia continuamente…; serás como um jardim bem regado, como uma fonte borbulhante cujas águas nunca faltam. Teu povo reconstruirá as ruínas antigas; tu levantarás os fundamentos das gerações passadas: serás chamado reconstrutor de ruínas, restaurador de caminhos, para que se possa habitar” (Is 58, 10-12)

Qual o nosso futuro? “O futuro depende da decisão de amar, com tudo o que ela implica e tudo o que ela exige” (Pierre Ganne).


Documento PDF: Qual o nosso futuro?


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