Como é habitual nesta altura, o Padre Tomaz Mavrič, CM, Presidente do Coselho Executivo da Família Vicentina, envia uma reflexão a toda a Família Vicentina por ocasião da festa de S. Vicente de Paulo, a 27 de Setembro:
Aos membros da Família Vicentina
Queridos irmãos e irmãs,
A graça e a paz de Nosso Senhor Jesus Cristo estejam sempre conosco!
Este ano, 2023, é um ano especial para toda a Família Vicentina, para todo o Movimento da Família Vicentina, pois celebramos o 400º aniversário da “Luz de Pentecostes”, a experiência mística da Senhora Le Gras, que se tornaria Santa Luísa de Marillac.
A preparação para a festa de São Vicente de Paulo é uma oportunidade maravilhosa para refletir e meditar sobre essa experiência extraordinária que, nos anos seguintes, produziu graças tão abundantes que, 400 anos depois, continuamos a sentir fortemente os efeitos.
A meu pedido, a Superiora Geral das Filhas da Caridade, Irmã Françoise Petit, preparou uma reflexão para todos nós sobre esse acontecimento impressionante, convidando-nos claramente a lê-lo não como um fato histórico, mas, como um acontecimento que deve se encarnar hoje na vida de cada um de nós e na vida das gerações futuras.
Santa Luísa e São Vicente, continuem a interceder por todos nós!
Seu irmão em São Vicente,
Tomaž Mavrič, CM
Em 4 de junho de 1623, uma mulher jovem, casada e com um filho, entrou na Igreja de Saint-Nicolas-des-Champs, em Paris, na festa de Pentecostes. Triste, atormentada, indecisa e ainda assim, confiante em Deus, ela se abriu à inspiração do Espírito Santo e esse foi o início de uma caminhada espiritual e missionária.
Trata-se da Senhora Le Gras que se tornaria Santa Luísa de Marillac. Ela deixou que o Espírito Santo agisse com a certeza de que nunca mais estaria sozinha, ela voltou-se para os outros e, com o passar dos dias e dos anos, esforçou-se para superar todos os obstáculos. Isso a conduziu a fundar, juntamente com São Vicente de Paulo, a Companhia das Filhas da Caridade.
Para agradecer a ação do Espírito Santo, um Ano Jubilar foi aberto em 4 de junho de 2023. Ele nos dá a oportunidade de fazer memória a esse acontecimento de fundação e fortalecer nosso ímpeto espiritual e missionário.
Qual é a mensagem transmitida por Santa Luísa? O que esse acontecimento nos diz, o que pode falar ao coração de cada um de nós e de toda a Família Vicentina hoje?
Em 1623, esse momento de oração diante do sacrário, em uma igreja paroquial, foi o ponto de partida de um caminho de uma vida completamente doada, uma caminhada de santidade. Foi também um dos acontecimentos que deram origem à história da Família Vicentina.
Nessa etapa de sua vida, Luísa estava se fazendo várias perguntas angustiantes: Será que ela deveria deixar o marido para assumir um compromisso radical de seguir a Cristo? Quem poderia acompanhá-la espiritualmente? E, por fim, a alma é realmente imortal?
Eis o que ela escreveu em um pergaminho e guardou preciosamente:
“No dia de Pentecostes, participando da Santa Missa ou fazendo oração na igreja, de repente, fui esclarecida de minhas dúvidas e avisada de que deveria permanecer com meu marido e, tempo viria em que estaria em condições de fazer voto de pobreza, de castidade e obediência, numa pequena comunidade, com pessoas que fariam o mesmo. Entendi, então, que isso seria num lugar dedicado a servir ao próximo: não podia, porém, compreender de que jeito se faria isso, porque, haveria idas e vindas.
Fui assegurada também, de que deveria permanecer em paz quanto a meu Diretor; Deus me daria outro que, (então) me fez ver, segundo me parece e senti repugnância em aceitá-lo. Entretanto, consenti, afigurando-se-me que ainda não era hora de fazer-se essa mudança.
Minha terceira pena foi-me tirada pela certeza que senti em meu espírito de que era Deus quem me ensinava tudo o que foi dito acima e, se Deus existia, não poderia duvidar do resto”.
Como podemos interpretar essa mensagem que em razão das expressões usadas e de nosso contexto do século XXI, pode parecer um pouco obscura?
Antes de 4 de junho de 1623, Luísa de Marillac era uma mulher fragilizada por essas questões existenciais. No entanto, seu desejo mais profundo era de responder ao que o Senhor estava a pedir-lhe. Naquele dia, ela recebeu a intuição de que era chamada para servir a Deus e aos outros. Mas onde, com quem e como?
A pergunta sobre o seu marido correspondia, sem dúvida, a uma sede de ir além para viver melhor seu batismo, mas o Espírito lhe havia esclarecido que ela precisava primeiro cumprir seu compromisso, o do casamento, e criar seu filho. Luísa era uma mulher completa que não conseguia se imaginar assumindo um compromisso parcial. Ela sempre deu continuidade às suas ideias na realização de suas obras, no acompanhamento das Irmãs em uma Companhia nascente, naquilo que o Espírito lhe inspirava a fazer. Foi isso que ela percebeu em 4 de junho: quando chegar o momento certo, ela poderá se dedicar inteiramente a novos projetos.
Por isso, ela sente que um dia poderá fazer os votos e receber uma missão particular que a levará a servir com outras pessoas, aqui e em outros lugares. No momento, nada está claro, mas tudo está germinando. O vínculo indissolúvel entre a fé em um Deus que se fez próximo e a ação de “servir ao próximo” já era evidente. A intuição de “idas e vindas” se tornaria uma característica essencial do serviço das Filhas da Caridade.
A escolha de seu diretor espiritual foi outra causa de turbulência interior. Sua tranquilidade veio da confiança em Deus. Ela estava profundamente convencida de que obedecer a Ele é uma fonte de liberdade interior.
A mensagem de Pentecostes exprime o sinal precursor de uma espiritualidade da Encarnação. Ela sabia que Cristo tinha vindo para unir sua alma e sua humanidade. Ela percebeu que nenhum serviço seria possível sem um enraizamento profundo em Cristo e que o rosto dos pobres reflete o rosto do Servo sofredor.
Em 2023, o que nos diz esse acontecimento que estamos celebrando em ação de graças e na busca por “mais”, não em quantidade e números, mas por “cada vez mais” coerência com o Evangelho e com o carisma que todos nós recebemos?
O 400º aniversário da Luz de Pentecostes, é de fato uma luz do Espírito concedida à Santa Luísa e transmitida de geração em geração, nos oferece uma oportunidade maravilhosa de rezar com Santa Luísa, de rezar juntos e de rezar para que possamos identificar o que é essencial para hoje, no mundo, na Igreja e, em particular, com nossos irmãos e irmãs que sofrem. A releitura da vida de Santa Luísa e de seus escritos não nos faz voltar ao passado, mas nos incentiva a guardar o significado de seu pensamento e de sua ação para criar algo novo nos dias atuais. Para fazer isso, é preciso criar as condições necessárias.
Elas podem ser expressas em três caminhos a serem empreendidos pessoalmente, por cada Ramo da Família Vicentina, juntos localmente e nos encontros concretos: o caminho da escuta, o caminho da audácia missionária e o caminho da confiança.
- O caminho da escuta
Santa Luísa extraiu sua força espiritual e missionária através da escuta ao Espírito, da escuta e diálogo com São Vicente e com as Irmãs, da escuta aos apelos das necessidades de sua época. Ela é um modelo de mulher com o ouvido atento e o coração disponível para abrir-se aos outros.
“Suplico à bondade de Nosso Senhor, que disponha nossas almas para receber o Espírito Santo e que assim, inflamadas no fogo de seu Amor, vos consumais na perfeição desse amor que vos fará amar a santíssima vontade de Deus…” (SL, C. 362, p. 400, maio de 1651).
Não se pode realizar nenhuma de nossas iniciativas sem esse tempo de abertura ao sopro de Deus, de atenção às realidades do mundo, de momentos de reflexão em conjunto. Esse modo de ser e de fazer é uma exigência que não pode ser vivenciada sem a humildade. Isso significa aceitar que não somos autossuficientes, que nos permitimos ser transformados e até mesmo impulsionados. Seria uma ilusão pensar em fazer as coisas sem Deus e sem o outro.
Como podemos ouvir melhor aqueles que muitas vezes não contam com ninguém como as mulheres e os homens vulneráveis, destituídos ou que sofrem todos os tipos de pobreza? Eles têm algo a nos ensinar sobre a vida e o Evangelho, porque o Espírito está presente em todos, especialmente nos mais pequenos.
Ouvir o Espírito Santo poderia marcar este ano de forma especial e, depois, tornar-se uma maneira mais habitual de ser em nossa vida cotidiana. Rezar antes de agir, rezar para agir seguindo o exemplo de Jesus como discípulo missionário. Seguir juntos o caminho da escuta…
- O caminho da audácia missionária
Santa Luísa não tinha medo de se comprometer com aqueles que viviam na extrema pobreza de sua época. Ela soube juntamente com São Vicente como organizar a caridade sem temer os ricos da corte e os privilegiados da Igreja, sem temer preconceitos ou críticas.
“Pois não basta ir e dar, mas, é necessário um coração purificado de todo interesse” (SL, C. 257, p. 298, 29 de agosto de 1648).
Para a Família Vicentina a audácia missionária não é novidade. É até mesmo a origem e a razão de ser de cada um dos Ramos, mas devemos reconhecer que precisamos sempre nos renovar, especialmente, por vezes, em nossas maneiras de fazer. Algumas, são ainda atuais, outras não. A audácia passa pelo discernimento, pela clareza e vontade de estabelecer prioridades, pois não podemos fazer tudo.
A audácia missionária, às vezes, significa ousar seguir em frente sem a certeza do sucesso de um projeto; significa ousar experimentar, como fizeram São Vicente e Santa Luísa, para atender às necessidades de uma maneira diferente da que sempre fizemos, por meio de iniciativas locais e modestas, adaptadas ao contexto.
Já se vive a audácia missionária quando comunidades, membros de associações vão às periferias a fim de unir-se aos seus irmãos e irmãs em humanidade, vítimas da pobreza e da injustiça. Continuemos a percorrer juntos o caminho da audácia…
- O caminho da confiança
Santa Luísa fundamentou sua vida na fé em um Deus que veio à terra. Ela se deixava envolver pela vida divina e tinha uma grande devoção à Trindade. Muitas vezes recomendava às Irmãs que vivessem uma forma de abnegação na paz, a fim de acolher a suavidade do Espírito Santo, certa de que a confiança em um Deus que se faz próximo é, de alguma forma, a garantia de que nada de mau pode acontecer.
“Não sei se me engano; parece-me, porém, que Nosso Senhor quererá sempre mais confiança do que prudência… e que esta mesma confiança fará agir a prudência quando for necessária e quase sem nos apercebermos” (SL, C. 546, p. 589, 8 de agosto de 1656).
A confiança em Deus é um ato de fé que precisa ser nutrida por meio da meditação da Palavra de Deus, do silêncio da oração, da partilha de experiências e da escuta do que nos dizem os pobres. Porque a confiança é também aquela que temos nos outros.
Confiar uns nos outros a ponto de podemos simplesmente partilhar sobre sua fé, suas preocupações, suas indignações diante de tanto sofrimento em que vivem nossos irmãos e irmãs. A confiança em Deus e nos outros constrói a missão sobre a rocha e não sobre a areia. Ela também constrói a amizade fraterna dentro da Família Vicentina. Não tenhamos medo de seguir juntos o caminho da confiança…
A escuta, a audácia missionária e a confiança são verdadeiros desafios para a nossa época baseada frequentemente sobre:
- A falta de escuta devido à preferência dada ao monólogo em vez do diálogo autêntico ao que se acrescenta o risco de uma interioridade parasitada por uma overdose de informações.
- A audácia paralisada pelo medo do futuro, expressa em abordagens identitárias e a tentação de olhar para si mesma, um obstáculo à criatividade e à generosidade.
- A confiança sufocada pelas dúvidas e suspeitas insidiosamente destiladas na sociedade e, portanto, em nossas mentes.
Santa Luísa nos ensina o contrário, e nos pede para nos voltarmos resolutamente para o Senhor, para nos deixarmos guiar pelo Espírito Santo para servir a exemplo de Jesus. Ela nos convida a estar constantemente abertos, a liberar espaços internos e externos para que possamos ser cada vez mais capazes de acolher, juntos, nossos irmãos e irmãs, os estrangeiros, os doentes, os sem-teto…
“As almas verdadeiramente pobres e desejosas de servir a Deus devem ter grande confiança em que o Espírito Santo ao descer sobre elas, e não encontrando nenhuma resistência, as disporá convenientemente para cumprir a santíssima vontade de Deus, que deve ser seu único desejo… E, sem dúvida alguma, o Espírito Santo vindo as almas assim dispostas, o fogo de seu amor, nelas estabelecer-se-ão as leis da santa caridade e lhes dará fortaleza para atuar” (cf. SL, E. 87, p. 920).
Se cada um, se cada uma investir totalmente no seu Ramo, com sua própria identidade, sua história e sua vida, é possível avançarmos juntos, chegarmos aos lugares mais precários, formarmos “comunidades de base” de irmãos e irmãs a exemplo de São Vicente e de Santa Luísa, ou seja, voltados incondicionalmente para o serviço dos mais pobres entre nós.
Rezemos e agimos, porque o Senhor tem a audácia de nos escutar e confiar em nós.
Irmã Françoise Petit
Filha da Caridade
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