Na carta do Advento deste ano, Pe. Tomaž Mavrič, CM, 24º sucessor de São Vicente, convida-nos a mergulhar no exemplo de São Vicente de Paulo, abordando uma das principais fontes em que Vicente bebeu como um místico da Caridade, a oração diária: “Ele exortou todos os grupos que fundou ou frequentou: os membros leigos da Confraria da Caridade, os Padres e os Irmãos da pequena Companhia da Congregação da Missão, as Filhas da Caridade, as Damas da Caridade e os Padres das Conferências das terças-feiras, a beber diariamente na fonte da oração”.
Carta do Advento
A todos os membros da Família Vicentina
Meus queridos irmãos e irmãs!
A graça e a paz de Jesus estejam sempre conosco!
Na minha primeira carta para a festa de São Vicente, há dois anos, escrevi sobre São Vicente de Paulo, místico da Caridade. Quando refletimos sobre São Vicente como um místico da Caridade e, neste sentido, tentamos seguir o seu exemplo, devemos nos lembrar que ele não foi um místico tal como a Igreja costuma descrever no sentido comum do termo. Vicente de Paulo foi místico, mas um místico da Caridade. Com os olhos da fé, ele viu, contemplou e serviu Cristo na pessoa dos pobres. Quando tocava as feridas das pessoas marginalizadas, acreditava estar tocando as chagas de Cristo. Quando atendia as mais profundas necessidades deles, estava convicto de que adorava ao seu Senhor e Mestre.
Neste tempo do Advento, falarei sobre uma das principais fontes na qual, como místico da Caridade, Vicente bebeu: a oração diária. Ele exortou todos os grupos que fundou ou frequentou: os membros leigos da Confraria da Caridade, os Padres e os Irmãos da pequena Companhia da Congregação da Missão, as Filhas da Caridade, as Damas da Caridade e os Padres das Conferências das terças-feiras, a beber diariamente na fonte da oração.
Uma das frases mais citadas de São Vicente, tirada de uma conferência dada aos membros da Congregação da Missão, expressa com eloquência a atitude de Vicente:
Dai-me um homem de oração e ele será apto para tudo. Poderá dizer com o Santo Apóstolo: “Tudo posso naquele que me sustenta e me conforta” (Fl 4,13). A Congregação da Missão subsistirá enquanto o exercício da oração nela for fielmente praticado, porque a oração é como uma fortaleza inexpugnável que protegerá os missionários contra toda a sorte de ataques” [1]
Vicente falava da oração cotidiana. Ele afirmou aos seus seguidores:
Ora, avante, demo-nos todos à prática da oração, pois, por meio dela nos vêm todos os bens. Se perseveramos na vocação, será graças à oração. Se tivermos bom êxito em nossos encargos, será graças à oração. Se não cairmos no pecado, será graças à oração. Se permanecermos na caridade, se nos salvarmos, tudo isso será graças a Deus e à oração. Assim como Deus nada recusa à oração, quase nada concede sem a oração[2].
Para encorajar seus filhos e filhas a fazer a oração, ele utilizou muitas metáforas comumente empregadas por autores espirituais de sua época, dizia-lhes que a oração é para a alma o que o alimento é para o corpo[3]. Ela é uma “fonte de juventude” onde somos revigorados[4]. É um espelho no qual vemos todas as nossas imperfeições e nos ajustamos para nos tornarmos mais agradáveis a Deus[5]. É um refrigério em meio a nossa difícil luta cotidiana no serviço dos pobres[6]. Ela é uma pregação que fazemos a nós mesmos[7], disse Vicente aos missionários. É um livro de recursos para o pregador, no qual pode-se encontrar as verdades eternas e transmiti-las ao povo de Deus[8]. Ela é um doce orvalho, que refresca a alma a cada manhã, disse Vicente às Filhas da Caridade[9].
Vicente aconselhava Santa Luísa de Marillac a formar bem as Irmãs jovens para a oração[10]. Ele deu muitas conferências práticas sobre esse assunto. Assegurava as Irmãs que, de fato, a oração é muito fácil, é como se conversássemos com Deus durante meia hora. Ele dizia que se alguns são felizes pelo fato de falar com o rei, deveríamos nos alegrar em poder falar com Deus, de coração para coração, todos os dias[11].
Para Vicente, a oração é uma conversa com Deus, com Jesus, na qual expressamos nossos sentimentos mais profundos (ele chamou esta oração de “afetiva”) e buscamos saber o que Deus nos pede a cada dia, particularmente, em nosso serviço aos pobres. Ela se caracteriza por uma profunda gratidão a Jesus pelas inúmeras dádivas recebidas, especialmente, pela nossa vocação de servir os pobres. Da oração brotam resoluções sobre a maneira como poderíamos melhor servi-los no futuro. Para alguns, e até mesmo para muitos, ela dá lugar a uma contemplação silenciosa do amor que Jesus tem por nós e de seu amor pelos pobres e, isto nos impulsiona a lançar “raios de amor” que “penetram os céus” e tocam o coração de Nosso Senhor[12].
Para Vicente, o principal assunto da oração era a vida e o ensinamento de Jesus. Ele enfatizou que deveríamos voltar-nos incessantemente aos “mistérios” da humanidade de Jesus: seu nascimento, seu relacionamento com Maria e José, os acontecimentos do seu ministério público, seus milagres, seu amor preferencial pelos pobres. Vicente nos exortava a meditar as ações e os ensinamentos de Jesus nas Escrituras[13]. Entre os ensinamentos de Jesus, Vicente chama a atenção especialmente para o Sermão da Montanha[14]. Acima de tudo, recomendou a oração centrada na paixão e na cruz de Jesus[15].
O método que São Vicente ensinou foi o de São Francisco de Sales[16], fazendo apenas leves modificações. Vicente era mais sóbrio que Francisco de Sales quando falava sobre a utilização da imaginação. Embora valorizasse a oração afetiva, insistiu vigorosamente na necessidade de resoluções práticas. Em particular, nas conferências às Filhas da Caridade, ele mesclava de modo agradável a sabedoria espiritual e o bom senso. Ele alertou as Irmãs sobre o cultivo de “belos pensamentos” que não levam a nada. Preveniu os sacerdotes contra a utilização da oração como um período para o estudo especulativo.
O método proposto por São Vicente de Paulo comporta três etapas:
1. Preparação
- Primeiramente, colocar-se na presença de Deus. Isso pode ser feito de diferentes maneiras: considerar Nosso Senhor presente no Santíssimo Sacramento, pensar em Deus como Rei do universo, refletir sobre a presença de Deus em nosso coração.
- Depois, pedir ajuda para rezar bem.
- Finalmente, escolher um assunto para a oração, tal como um mistério da vida de Jesus, uma virtude, uma passagem das Escrituras ou um dia de festa.
2. Corpo da oração
- Meditar sobre o assunto escolhido.
- Se o assunto é uma virtude, buscar os motivos para amar e praticar esta virtude. Se for um mistério da vida de Jesus, por exemplo, a paixão, imaginar o que aconteceu e meditar sobre o seu significado.
- Ao meditar, expressamos a Deus o que está em nosso coração (por exemplo, o amor de Cristo que tanto sofreu por nós, o dissabor do pecado, a gratidão). Basicamente, Vicente encorajou seus seguidores a:
- Refletir sobre o assunto da oração,
- Identificar as motivações da escolha,
- Tomar resoluções concretas para praticá-lo.
3. Conclusão
Agradecer a Deus pelo momento de oração e pelas graças recebidas. Apresentar a Deus as resoluções tomadas. Depois, pedir ajuda para realizá-las.
A oração diária é um elemento indispensável da nossa espiritualidade. São Vicente tinha absoluta convicção da sua importância em nossa vida e serviço junto aos pobres. Ele a qualificou como “alma de nossas almas”[17] e pensava que sem a oração, seríamos incapazes de perseverar diante das dificuldades inerentes ao nosso serviço aos mais abandonados.
Através desta carta do Advento, quero encorajar cada membro da Família Vicentina a se comprometer ou a continuar a se empenhar na oração diária. Cada Instituto de Vida Consagrada dentro da Família Vicentina tem suas próprias Constituições e Estatutos, onde estão descritas as práticas da sua vida de oração, inclusive o tempo a ser consagrado à oração diária. Gostaria também de estimular os ramos leigos da Família Vicentina para empenharem-se cotidianamente a fazer a oração, mesmo que seja por um curto período de cinco a dez minutos.
Vicente reconheceu que existem várias maneiras de fazer a oração e incentivou a sua prática. Certamente, alguns utilizarão outros métodos, além do ensinado com frequência por ele e que descrevi anteriormente. Muito embora possamos empregar outros métodos de oração, faz-se necessário conhecer e guardar na mente o método que São Vicente de Paulo nos deixou. Afinal, o mais importante é envolver a mente e o coração na conversa meditativa com Jesus e, que a façamos quotidianamente e com perseverança.
- A lista dos assuntos frequentes de meditação que São Vicente de Paulo nos deixou é longa:
- a relação de Jesus com Deus Pai
- seu amor efetivo e compassivo pelas pessoas marginalizadas
- o Reino que anunciou
- a comunidade que formou com os Apóstolos
- sua oração
- a presença do pecado no mundo e em nós
- a prontidão de Jesus em perdoar
- o poder de curar
- a atitude de servo
- o amor pela verdade/simplicidade
- a humildade
- a sede de justiça
- o profundo amor humano por seus amigos
- o desejo de trazer a paz
- o combate contra a tentação
- a cruz
- a ressurreição
- a obediência de Jesus à Vontade do Pai
- a mansidão de Jesus
- a mortificação
- o zelo apostólico
- a pobreza
- o celibato
- a obediência
- a alegria e ação de graças de Jesus.
Todos esses assuntos estão relacionados a nossa missão junto aos pobres. Todos eles nos ajudarão a seguir Vicente, místico da Caridade. Que maravilhosa oportunidade nos foi dada para reavivar a oração diária que, a partir deste Advento, permanecerá como parte da nossa vida espiritual até a nossa partida desta terra para a eternidade!
Que nossa oração seja sempre fundamentada na Bíblia, nas leituras da liturgia diária. Não passemos o tempo da oração a ler um livro espiritual. Temos a possibilidade de fazer nossa leitura espiritual em outro momento do dia.
Meditar, significa colocar-se diante de Deus, diante de Jesus, através de sua Palavra. Significa colocar o nosso coração totalmente à disposição de Jesus, permitindo-Lhe que fale conosco enquanto O ouvimos. Significa permanecer em atitude de escuta ao que Jesus quer nos comunicar diariamente. Significa confiar na Providência para lutar contra todas as tentações de evitar ou omitir a oração cotidiana. Significa simplesmente estar com Jesus todos os dias no silêncio da nossa mente e do nosso coração, mesmo que nossa mente permaneça vazia e que tenhamos a impressão de que nada aconteceu, de que perdemos meia hora sem nada fazer, pois Jesus não nos comunicou nenhuma ideia, nenhum sentimento ou mensagem. Significa simplesmente acreditar no modo de comunicação de Jesus com Deus Pai. Muitas vezes, Jesus passou a noite inteira em oração. Significa simplesmente manifestar a Jesus nosso amor total por Ele, pelo simples fato de estar em sua presença, prontos para acolher a qualquer momento e conforme a Providência julgar oportuno, a mensagem que Jesus quer nos comunicar. Significa simplesmente estar lá todos os dias, prontos, para o momento que Jesus julgará apropriado, para não deixar passar o momento da graça, para não perder a visita de Jesus.
Durante os seus últimos anos, Vicente pronunciava, cada vez mais, palavras entusiasmadas sobre o amor de Deus. Claramente, elas emanavam da sua oração. No dia 30 de maio de 1659, ele rezou em voz alta durante uma conferência aos coirmãos:
“Consideremos o Filho de Deus. Oh! Que coração de caridade! Que chama de amor! Meu Jesus, dizei-nos vós mesmo, um pouco, por bondade. Quem vos tirou do céu para virdes sofrer a maldição da terra, tantas perseguições e tormentos que aqui sofrestes? Ó Salvador! Ó fonte de amor descido até a nós e humilhado até a um infame suplício. Quem assim mais amou o próximo do que vós? Viestes expor-vos a todas as nossas misérias, tomar a forma de pecador, levar uma vida de sofrimentos e sofrer uma morte vergonhosa. Existe, por acaso, um amor semelhante ao vosso? Mas quem poderia amar de um modo tão eminente e nobre como vós? Só Nosso Senhor amou as criaturas a esse extremo de deixar o trono do seu Pai para vir tomar um corpo sujeito às enfermidades. E para que? Para estabelecer entre nós, por seu exemplo e por sua palavra, a caridade para com o próximo. Foi esse amor que o crucificou e que gerou esse fruto admirável de nossa redenção. Ó meus Senhores, se tivéssemos um pouco desse amor, permaneceríamos de braços cruzados? Deixaríamos morrer aqueles aos quais pudéssemos assistir? Oh! Não, a caridade não pode ficar inativa. Aplicai-nos à salvação e consolação do próximo” [18].
Poucos santos foram tão ativos como São Vicente, contudo, suas ações brotavam de sua profunda imersão em Deus, em Jesus. Quão afortunados somos por ter um Fundador tão extraordinário!
Que Deus os cubra com suas bênçãos durante este tempo do Advento.
Seu irmão em São Vicente,
Tomaž Mavrič, CM
Superior geral
Notas:
[1] Obras completas – São Vicente de Paulo, Tomo XI, Colóquios, doc. 67 – Trecho de um colóquio sobre a oração, pág. 85,
[2] Obras completas – São Vicente de Paulo, Tomo XI, Colóquios, Conf. 167 – “Partilha de Oração de 10 de agosto de 1657, sobre a Oração”, pág. 417
[3] SV, Conf. 37, de 31 de maio de 1648, sobre a oração, pág. 267.
[4] Ibid. pág. 274.
[5] Ibid, pág. 273.
[6] SV, Conf. 36, de 1 de maio de 1648, sobre o bom uso das instruções, pág. 255.
[7] SV, Conf. 84, de 8 de setembro de 1657; Conf. 68 – de 1 de agosto de 1655, “sobre a observância das regras”.
[8] cf. Obras completas – São Vicente de Paulo, Tomo XII, Colóquios, Conf. 181 – Partilha de Oração 1658, sobre a Obra dos Ordinandos, pág. 14.
[9] SV, Conf. 36, de 1 de maio de 1648, sobre o bom uso das instruções, pág. 264
[10] Obras completas – São Vicente de Paulo, Tomo IV, Correspondência, Carta 1240 – À Luísa de Marillac (entre 1647 e 651), pág. 67.
[11] SV, Conf 15, de 14 de junho de 1643, sobre a explicação do regulamento, pág. 75.
[12] SV, Conf. 5, de 16 de agosto de 1640, sobre a fidelidade ao levantar e à oração, pág. 25
[13] cf. Regras comuns da Congregação da Missão, I, 1.
[14] Obras completas – São Vicente de Paulo, Tomo XII, Colóquios, Conf. 197, de 14 de fevereiro de 1659, sobre as máximas evangélicas, pág. 116.
[15] SV, conf. 7, de 15 de outubro de 1641, sobre o jubileu, pág. 29
[16] SV, conf. 105, de 17 de novembro de 1658, levantar, oração, exames e outros exercícios, pág. 829
[17] SV, Conf. 37, de 31 de maio de 1648, sobre a oração, pág. 267.
[18] Obras completas – São Vicente de Paulo, Tomo XII, Colóquios, Conf. 207, de 30 de maio de 1659, sobre a caridade, (Regras comuns, cap. II, art. 12), pág. 269.
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