Encontro da Família Vicentina por ocasião dos 400 anos do Carisma Vicentino

Apresentação em língua portuguesa por Eduardo Marques Almeida
Roma – Outubro/2017

Prezados coirmãos, coirmãs, confrades e consócias.

Estamos aqui em Roma, nesta maravilhosa igreja, celebrando os 400 anos de fundação do carisma vicentino. Em 1617, São Vicente fundou as Damas da Caridade, hoje chamadas de Associação Internacional das Caridades. Foi a primeira obra de São Vicente que continuou a existir até hoje, após quatrocentos anos. Oito anos depois, em 1625, São Vicente fundou a Congregação da Missão e em 1633, fundou, junto com Santa Luisa de Marillac, a Companhia das Filhas da Caridade.

Gostaria também de salientar que nesta ocasião, estará sendo lançada oficialmente a Aliança da Família Vicentina pelos Sem-teto (“Famvin Homeless Alliance”), uma iniciativa que atuará em favor das pessoas que vivem nas ruas, os refugiados (dentro e fora de seu país) e os que vivem nas favelas. Mark McGreevy foi quem começou esta pastoral na Família Vicentina, na Inglaterra: ele é Diretor do instituto DePaul International e fundador do Institute of Global Homelessness (de Chicago).

Calcula-se que já houve cerca de 260 instituições fundadas a partir do carisma de São Vicente. Estima-se que há quase um milhão de membros das diferentes ramas da Família Vicentina. Minha experiência vem da atuação há 45 anos na Sociedade de São Vicente de Paulo (SSVP), fundada 200 anos depois das Filhas da Caridade, em 1833, por seis jovens estudantes e um jornalista mais maduro (40 anos). Espero que possamos dialogar com experiências das ramas da Família presentes aqui hoje.

Antes de mais nada, gostaria que os movimentos vicentinos que aqui estão se apresentassem, para que possamos nos conhecer melhor, todos os que falamos o mesmo idioma: o “português vicentino”. Como vocês sabem, é muito fácil conhecer um vicentino na rua: todos “temos a mesma cara”!

Formamos todos a Família Vicentina, que não é uma instituição, mas um movimento. A Família Vicentina é um movimento que busca manter aceso o carisma vicentino em todo o mundo. Apesar de todas as ramas da Família Vicentina serem independentes, possuem a coordenação espiritual do Superior Geral da Congregação da Missão.

A celebração dos 400 anos do Carisma Vicentino nos possibilita refletir um pouco mais sobre a necessidade, agora mais que nunca, de acentuar o sentido comunitário de nossa Família Vicentina, uma comunidade aberta que quer buscar a santidade de cada um, servindo e amando Jesus Cristo no Pobre, devolvendo a dignidade àqueles que a perderam, para que se sintam participantes em comunidade conosco. Os vicentinos, portanto, em nossa missão, temos que fazer valer este projeto de comunidade universal: uma comunidade que, para dar frutos, devemos preservar e constantemente restaurar. E o faremos com a oração e com o concurso da graça que nos é dada gratuita e ilimitadamente.

Gostaria de começar definindo o que eu entendo por carisma vicentino. Primeiramente, um carisma é definido como “um dom extraordinário e divino concedido a um crente ou grupo de crentes, para o bem da comunidade”. Portanto, o carisma vicentino é um dom de Deus e deve ser posto a serviço da comunidade, isto é, da Família Vicentina e, sobretudo, dos Pobres que servimos: eles são a nossa verdadeira comunidade de amor.

Eu gosto muito da seguinte definição para o carisma vicentino: “é a busca da santificação (ou conversão) através de três meios que são muito interligados: a oração (e a devoção), a evangelização dos pobres e a luta pela justiça”.

Em primeiro lugar, a oração e a devoção nos aproximam de Deus. Conhecemos São Vicente como o homem de ação. Mas há uma outra faceta de Vicente que às vezes nos esquecemos. Ele passava horas rezando. E rezava com tanta profundidade que suas orações faziam com que tivesse ideias de projetos; e ele saía do Sacrário direto para implementar as suas ideias. Portanto, um dos elementos muito importantes do carisma vicentino é a FÉ NA PROVIDÊNCIA. São Vicente confiava que Deus iria realizar suas obras da forma e no momento corretos, porque, afinal, elas eram um resultado de sua profunda oração.

Frederico Ozanam, fundador da SSVP, também era assim. Na Capela do Carmo, em Paris, onde está o seu túmulo, Ozanam costumava ir para a celebração diária da missa e para a sua adoração ao Santíssimo Sacramento.

São Vicente costumava dizer que, às vezes, “podemos trocar Deus por Deus”, isto é, podemos deixar de rezar, se o Pobre que assistimos urge a nossa assistência e a nossa presença. No entanto, esta afirmação de São Vicente não pode servir para que justifiquemos o nosso afastamento da oração e da devoção. Na época em que vivemos, onde tudo funciona na velocidade digital, quase “não temos tempo” para nos concentrar e rezar. Ou, muitas vezes, trocamos o rosário pelo celular e pensamos que rezar é coisa do passado, ou é perda de tempo. De fato, é cada vez mais difícil concentrar-nos diante do Sacrário e expor nossas dúvidas, nossas fraquezas; ou agradecer nossas conquistas, nossos dons; ou, simplesmente, escutar o que Deus tem a nos dizer! Mas é preciso exercitar a oração, tomar um tempo do dia para fazer este experimento de fé!

Também é importante que busquemos exercitar a nossa oração comunitária. Primeiro, a missa. Será que é tão difícil guardar meia hora de nosso tempo diário para receber o mais importante de nossa fé, o Cristo na Santíssima Eucaristia? Segundo, a nossa família: quantas vezes nos sentimos envergonhados de rezar em família! É preciso vencer este primeiro passo e rezar o terço, ou rezar um Pai-Nosso e três Ave-Marias, ou rezar nas refeições, ou tomar uns quinze minutos por semana e conversar com Deus em família sobre as dificuldades, colocar nas mãos Dele os nossos problemas; agradecer pelas conquistas de cada um e da família como um todo. Em terceiro lugar, a oração na comunidade vicentina: a conferência, a paróquia, a casa das Filhas da Caridade ou da Congregação da Missão, o grupo da Juventude Mariana Vicentina, enfim, todos os movimentos vicentinos. É muito importante exercitar a oração em comunidade vicentina! São Vicente realizava um lindo exercício com a Congregação da Missão que se chamava “repetição de oração”: eu aconselho vocês a buscar um Padre da Missão para explicar como se faz e realizar em sua comunidade!

Vou contar outro segredo! Quando vocês tiverem algo muito importante e quase impossível para pedir a Deus, peçam ao seu assistido ou assistida para que reze pela sua intenção! É infalível! Os Pobres são os queridos de Deus e Ele sempre vai ouvi-Los, principalmente, se for uma intenção de que os seus servidores, nós, necessitamos. Quando eu era bem jovem, visitava uma assistida de 90 anos que era cega. Ela percebia que era eu que chegava, antes de entrar na sua casa e eu sempre a incomodava com as minhas intenções, coitada! Ela rezava pelas minhas notas na escola, depois, pelas minhas conquistas de emprego, pelas minhas namoradas, pela minha família… E ela se sentia tão feliz por rezar pelas minhas intenções!

Aliás, Ozanam já dizia: “esta família Pobre que você ama, ama você também; você receberá mais do que dá, quando eles, o vovô, a mamãe e as crianças rezarem por você.” Então, o primeiro lugar para exercitar nosso carisma vicentino é aqui, na oração diante do Santíssimo Sacramento!

O segundo elemento do carisma vicentino é a evangelização dos Pobres. São Vicente costumava buscar e pregar a conversão permanente através da EXPERIÊNCIA.

E esta experiência ele retirava do ENCONTRO com o Pobre. Costumava dizer sua célebre frase: “os pobres são nossos senhores e mestres”. Eles nos ensinam.

Mas eles só podem nos ensinar, se nós nos abrirmos para escutá-Los. Primeiro, escutar os seus problemas: fazer dos problemas do Pobre os NOSSOS problemas. Segundo, escutar as suas experiências: fazer da vida do Pobre o NOSSO Evangelho, o alimento para a nossa vida.

Se visitarmos os nossos Pobres como se visita um conhecido ou conhecida qualquer, ou com os olhos de filantropia, vamos fazer caridade, mas perdemos a oportunidade de deixar que o Espírito Santo transforme a nossa caridade em AMOR. E esta é a grande mudança do carisma vicentino: a transformação da caridade em amor. É uma experiência mística que São Vicente nos ensina a fazer. A fundação das Damas de Caridade, há 400 anos, aconteceu quando Vicente saiu do púlpito de sua igreja, foi ao ENCONTRO da família necessitada, aprendeu da EXPERIÊNCIA de como vivia a família e empreendeu a sua primeira obra.  Amigas e amigos, este acontecimento é muito importante e não pode ser apenas histórico; tem que ser transformador! Se viermos até esta maravilhosa cidade lembrar o carisma vicentino e não nos transformarmos como São Vicente se transformava no ENCONTRO COM O POBRE, não vai ter valido a pena ter vindo! Desculpe ser meio duro, mas eu repito: Se viermos até esta maravilhosa cidade lembrar o carisma vicentino e não nos transformarmos como São Vicente se transformava no ENCONTRO COM O POBRE, não vai ter valido a pena ter vindo!

O Papa Francisco nos ensina constantemente sobre a “cultura do encontro”, a necessidade de ir às periferias e encontrar com o Pobre em suas necessidades e em suas fraquezas, encontrando assim Nele, o próprio Cristo. Esta experiência do encontro com o Pobre nos transforma, através de uma experiência mística. No final, como no quadro “O Mendicante” (abaixo), não se sabe quem serve a quem: se somos nós (com Vicente) que servimos o Pobre ou se é o Pobre (com o Cristo) quem nos serve, através do ensinamento para a nossa conversão!
Então, o segundo lugar para exercitar nosso carisma vicentino é no Santíssimo Sacramento que está na casa do Pobre!

O terceiro elemento do carisma vicentino é a busca da justiça (social). São Vicente dizia que “não há caridade que não seja acompanhada de justiça”. O primeiro passo é aprender da caridade; o segundo passo é defender os direitos do Pobre, do marginalizado, do excluído, do enfermo sem atendimento, da criança sem escola, da família sem casa, do operário ou do aposentado sem um salário digno.

Lutar pelos direitos do excluído, seja um serviço de saúde digno, seja uma escola de qualidade, seja uma casa que se possa chamar de lar, seja um salário justo… isso é justiça social!

Aqui, eu queria dar apenas um exemplo dos muitos que a Família Vicentina fez pela justiça social. Nós sabemos que Frederico Ozanam foi o precursor da Rerum Novarum, a primeira encíclica que estruturou o que chamamos hoje de Doutrina Social da Igreja. Entre 1830 e 1853, Ozanam refletiu, rezou, ensinou, proclamou, defendeu, lutou por estes direitos dos marginalizados de uma sociedade materialista que escravizava nas fábricas recém criadas, os pobres que vinham do campo para trabalhar. Ele foi um dos primeiros a falar sobre justiça social, sobre um sistema de impostos que gerasse serviços aos pobres, sobre o salário digno associado ao valor do trabalho, sobre os benefícios necessários aos trabalhadores, sobre democracia, sobre o valor justo da propriedade privada, sobre as relações entre patrões e operários, sobre a organização operária (por exemplo em sindicatos bem organizados), sobre a necessidade de eliminar a luta de classes que aconteceria anos depois. Seu principal argumento era que a caridade seria a solução, e que a Igreja – além do Estado – tinha um papel muito importante como agente transformador social e promovedor da justiça social.

Ozanam estudou muito e se tornou um professor muito respeitado no mundo inteiro, para que pudesse ter a autoridade de defender a justiça social. Quarenta anos depois da morte de Ozanam, o Papa Leão XIII utilizou os seus ensinamentos como base para a encíclica Rerum Novarum. E mais ou menos 150 anos depois da morte de Ozanam, João Paulo II disse claramente que Ozanam foi o precursor da Doutrina Social da Igreja, na cerimônia de sua beatificação em Paris!

Aliás, os Padres da Missão costumam dizer que Ozanam é o leigo que melhor soube interpretar os ensinamentos de São Vicente.

Não nos esqueçamos de que as Conferências Vicentinas foram primeiramente, as Conferências de História, que serviam para discutir as políticas de justiça social e a defesa da Igreja. Não nos esqueçamos de que São Vicente fazia a ponte entre a família real e os mais pobres, influenciando os que têm poder, para atuar pelos direitos dos excluídos. A justiça social está em nossas origens!

Estes exemplos de luta pela justiça social (e muitos outros da Família Vicentina) têm que ser o nosso guia, a nossa motivação, para que lutemos por uma mudança dos sistemas injustos, sem propagar a luta de classes, mas, ao contrário, construindo pontes para o diálogo justo, franco e equitativo entre os que têm poder ou dinheiro, e os que não tem nem um nem outro. Então, o terceiro lugar para exercitar nosso carisma vicentino é no dia-a-dia, na defesa e na propagação da justiça social!

Bem, só para lembrar, estes são os três elementos da busca de nossa santificação pelo carisma vicentino: a oração ou devoção, a experiência com a evangelização dos pobres e a luta pela justiça. E a mística do carisma vicentino funciona assim: nós aprendemos pela oração o que Deus quer que façamos; pelo encontro com o Pobre, aprendemos como podemos seguir a vontade de Deus; e aplicamos o que aprendemos com os dois – a oração e a visita – para a construção da justiça social.

Se alguém perguntar a você aí pelas ruas de Roma, nos próximos dias, o que você veio buscar aqui, você vai poder responder: reforçar o meu carisma vicentino, isto é, a minha conversão, através da oração, da experiência com a evangelização dos pobres e da luta pela justiça!

O tema escolhido para a celebração dos 400 anos é “Acolher o Estrangeiro: Desafio para a Espiritualidade Vicentina”. É um tema muito atual, porque um dos maiores desafios à estabilidade social de países tanto desenvolvidos quanto em vias de desenvolvimento é o fluxo internacional de pessoas. Libera-se o fluxo de capitais, mas o de pessoas parece que está se restringindo cada vez mais e causando problemas para nossos irmãos que, além de serem obrigados a deixar seus países, têm que conviver com a discriminação na maioria dos países para onde migram.

O estrangeiro é todo aquele que deixa a sua terra e se torna estranho em uma outra terra; mas também pode ser um estrangeiro em sua própria terra (um excluído). Em primeiro lugar, gostaria de dizer que ser um estrangeiro não necessariamente é uma coisa ruim. Minha esposa Andrea e eu temos 28 anos de casados e já mudamos de país ou cidade umas 15 vezes, para estudar, trabalhar, missionar… Tivemos muitas dificuldades, mas aprendemos muito e hoje, quando estamos por muito tempo em um mesmo lugar, já começamos a ficar incomodados…

Mas, mesmo não sendo necessariamente uma má experiência, ser estrangeiro nos leva a passar por dificuldades que são comuns em todos os casos.

O estrangeiro chega sem-casa e sem teto. Ele não tem um lugar, nem conhece a cultura e o ambiente do lugar aonde vai viver: ele se sente vulnerável, temeroso, incerto, envergonhado e ansioso. E por isso, começa a se separar dos outros, formando grupos isolados que se tornam seus “grupos de defesa”: sentem-se excluídos.

Meus avós foram imigrantes de Portugal para o Brasil. Saíram de Portugal com um pouco mais de 12 anos de idade. Apesar de ser a mesma língua e a mesma cultura, passaram por tudo isso: não tinham teto no início, tinham medo, incerteza, vergonha e ansiedade. Viveram toda a vida como imigrantes! Quem aqui já foi estrangeiro? O que você sentiu?

Estrangeiros têm a tendência a buscar refúgio para manter seus valores e sua ética. Interessante dizer que a palavra “ética” vem do grego “ethos” que quer dizer morada, habitat ou refúgio.

Este refúgio pode ser a conferencia vicentina. Vou contar para vocês minha experiência de estrangeiro em alguns lugares do mundo onde a Andrea e eu vivemos. Em Paris, quando éramos estudantes e sem recursos, passamos muita dificuldade, com os costumes, com o idioma e com muitas outras coisas. Mas foi um período de muita felicidade. Onde encontramos refúgio? Nas conferências vicentinas. O mesmo aconteceu depois em Moçambique, nos Estados Unidos, no Haiti, no Paraguai e em muitos lugares onde mudamos em nosso próprio país (Brasil).

Na verdade, Ozanam e seus companheiros fundaram as Conferências de História em Paris, em 1830-31, para se proteger da sociedade parisiense, que era anticlerical (contra a Igreja). Nela, eles podiam rezar, defender a Igreja e falar sobre cultura e história. Mais tarde, eles fundaram as Conferências de Caridade: neste momento, o “refúgio” deixou de ser só a sala de discussão e passou a ser também a casa do Pobre que eles visitavam.

Mas outros santos da história da Igreja buscaram seus refúgios como estrangeiros. Paulo fez isso em Corinto, quando se sentiu fraco, desassossegado e temeroso: ficou na casa de Áquila e Priscila, um casal já convertido e que tinha vindo de Roma, provavelmente, da mesma profissão que Paulo (fabricantes de tendas).

Há muitos tipos de estrangeiros, mas eu gostaria de falar sobre quatro situações: o estudante, o trabalhador, o missionário e o refugiado. O importante aqui é refletir sobre as características de cada um e sobre o nosso papel tanto como vicentinos para apoiá-los.

Falemos sobre os estudantes. Muitos jovens deixam suas terras para estudar em outros países. Que perigo estes jovens se perderem! Minha experiência me diz que quando um jovem vicentino deixa a sua terra para estudar, deixa também de ser vicentino. Como vimos anteriormente, Ozanam foi um exemplo a ser seguido! Será que não há nada que possamos fazer para acolher os jovens estudantes e criar o mesmo ambiente da primeira conferência para que seja uma espécie de “refúgio” para os jovens imigrantes?

Falemos sobre os imigrantes que vêm buscar uma vida econômica melhor para sustentar suas famílias, os que imigram pelo trabalho. Eles vêm da África para a Europa, da América Central, da República Dominicana e do Haiti para os EUA e Canadá. Por exemplo, vocês já devem ter ouvido falar do trem que cruza o México, da fronteira com a Guatemala até a fronteira com os Estados Unidos.

O trem foi apelidado de “La Bestia” por todo o sofrimento por que passam os imigrantes (em particular, crianças): mutilações por acidentes, prostituição, abusos sexuais, crime, tráfico de drogas. As pessoas que saem de seus países na América Central não saem para realizar crimes (só alguns!): são cem mil por ano que saem para fugir da violência ou da pobreza. E sofrem muito tanto no caminho quanto na chegada (quando conseguem chegar!).

Quando o Papa Francisco foi ao México, na fronteira com os Estados Unidos, onde passam milhares de imigrantes, ele falou algo muito vicentino: “um imigrante não pode ser considerado como um número, mas como uma pessoa humana”! É este carisma vicentino que deve ser o princípio dos projetos sociais de imigração: o migrante deve ser tratado como uma pessoa única, como uma família única!

O que leva uma família da América Central pobre a economizar $3000 (o equivalente a 3 anos do que ganham) para enviar um jovem ou uma criança sozinha para uma travessia de 30 dias a um outro país, passando por todos estes problemas (acidentes, abusos, crime, drogas)? Isso tem um nome apenas: desespero!

Quem aqui tem imigrantes entre os assistidos de suas conferencias, de seus dispensários, de seus hospitais? Que sentem eles? Solidão? Abandono? Baixa autoestima? Medo do futuro?

Eles merecem nosso apoio total, porque sofrem muitas discriminações. “Escondem-se” em lugares que nem podemos imaginar! Quantas vezes estas pessoas estão tão escondidas que somente a visita vicentina os pode encontrar! Quando vivíamos nos Estados Unidos, nossa conferencia visitava uma casa em um bairro de classe média alta, mas cheia de imigrantes latinos. Cada quarto da casa era uma “casa” de uma família de imigrantes; e isso acontecia a 20 minutos de Washington. É esta pobreza, a que chamamos de “envergonhada”, que devemos apoiar. Convido a vocês a pensar sobre isso e propor em seus grupos vicentinos uma estratégia para ir ao encontro destes imigrantes, conversar com eles, entender seus problemas e não deixa-los cair na tentação do crime, das drogas, da falta de esperança.

Dentre estes, que saem de seus países em busca de trabalho, há tantos estrangeiros que vêm por tráfico de pessoas, para a prostituição, para o trabalho forçado! Estão no submundo de nossas cidades! São Vicente passou por esta experiência como escravo na África e o que o salvou? Sua fé. Seu refúgio foi a sua fé! Evangelizemos estes estrangeiros com nossa palavra. Olhemos uma prostituta na rua com olhos de São Vicente e não com os olhos do julgamento! Vou contar um segredo para vocês: quando eu tinha uns 18 anos, caminhava da casa de meus pais para fazer adoração noturna ao Santíssimo e, no caminho, bem em frente ao dispensário das Filhas da Caridade, havia uma área onde costumavam ficar muitas prostitutas. Eu gostava muito de parar e conversar com elas: não podem imaginar as histórias de suas vidas! No começo elas não entendiam bem o que eu estava fazendo, mas depois, tornaram-se minhas amigas.

Falemos sobre um grupo de estrangeiros que têm muito de vicentinos: os imigrantes que abandonam uma vida confortável em seus países para ser missionários! Quem aqui é ou já foi missionário em países que não são os seus? Parabéns aos nossos missionários vicentinos! Um aplauso muito forte para elas e eles!

Eu conheci Padres da Missão e Filhas da Caridade que se tornaram missionários estrangeiros em Moçambique, no Haiti, na América Central, no Paraguai e mesmo em países desenvolvidos como os Estados Unidos e a França. São santos!

Eu queria dar um só testemunho para vocês terem uma ideia de quanto a missão santifica. Logo depois do terremoto do Haiti de 2010, que matou mais de 200 mil pessoas, havia uma comunidade de Filhas da Caridade que perderam a casa onde moravam e o colégio que dirigiam. Irmãs nossas de mais de 70 anos tiveram que dormir no piso duro e cobertas por uma tenda. Conversando com a Irmã Visitadora, ela me disse certa vez a seguinte poesia. “Logo depois do terremoto, estávamos tão felizes dormindo em nossas tendas. Não nos preocupávamos com nada mais a não ser com o serviço aos pobres. Depois de um tempo, começaram a vir as preocupações chatas e irrelevantes: ter que trocar o hábito, construir uma casa, lidar com a burocracia. Éramos tão mais felizes quando estávamos na tenda e celebrávamos a missa ao ar livre!” Que exemplo de santidade!

Finalmente, gostaria de refletir sobre a situação dos imigrantes refugiados. Há tantos imigrantes que fogem de seus países por perseguição política ou por problemas de segurança, ou fugindo da pobreza! Novamente, do meio-oriente e África para a Europa; centro-americanos para os Estados Unidos e Canadá; ou, entre países da Ásia.

Dados de 2015 indicam que existem cerca de 250 milhões de migrantes no mundo (75 milhões na Ásia, 76 milhões na Europa, 54 milhões na América do Norte, 21 milhões na África, 9 milhões na América Latina e 8 milhões na Oceania), sendo cerca de 20 milhões considerados refugiados. Esses números são alarmantes, mas a má notícia é que o problema tem se agravado: a migração aumenta 40% ao ano (mais uma vez, com grande concentração na Europa e na Ásia): cerca de 1.7 milhão migra na Ásia por ano e 1.3 milhão para a Europa.

Com todo o problema de terrorismo, ser um refugiado hoje é sinal de perigo. Não queremos que nossos filhos brinquem com os filhos de refugiados. Colocamos um muro entre nós e eles, porque nos assustam: o muro da discriminação é maior e mais forte que o muro de tijolos! Será que este comportamento significa viver o carisma vicentino?

E o que tem a ver o carisma vicentino com o serviço ao estrangeiro? É preciso começar dizendo que São Vicente foi um estrangeiro: foi estrangeiro em Paris (vindo do meio rural – Puy, sul da França); foi preso por corsários turcos e vendido como escravo nas costas da África. Ozanam também foi um estrangeiro: como vimos, saiu de Lion para Paris para estudar com 19-20 anos.

A experiência de ser um estrangeiro mudou a vida de nossos fundadores. Vicente quis se sentir um estrangeiro no mundo. Ele não se apegava a nada, mas ia em missão, como a própria Bíblia diz tantas vezes (por exemplo, em Gênesis 12, 1, “deixa a tua terra, a tua família e a casa de teu pai e vai para a terra que eu te mostrar”). São Vicente costumava dizer que “não sou daqui nem dali, mas de onde Deus quiser que eu esteja”.

Vicente mandou padres em missão (inicialmente a Madagascar): eles deveriam sentir o que é ser um estrangeiro. “Nossa vocação é percorrer não somente uma paróquia ou uma diocese, mas toda a terra, abrasando os corações dos homens, como o fez o Filho de Deus”. Fez o mesmo com as Filhas da Caridade; por exemplo, quando Santa Luiza saiu em sua primeira viagem missionária em 1629, Vicente lhe disse: “creio ser suficiente permanecer um ou dois dias em cada lugar pela primeira vez para lá voltar no próximo ano, se Nosso Senhor vos mostrar que podeis prestar-Lhe algum outro serviço”.

Lembremos da definição do carisma vicentino que falamos antes: “a busca de nossa santificação através da oração, da experiência com a evangelização dos pobres e da luta pela justiça”. Como vive-la no serviço ao estrangeiro?

Primeiro, é preciso rezar pelos estrangeiros, em particular, por aqueles que Deus nos coloca no caminho. Segundo, é preciso ir ao encontro do estrangeiro, literalmente, busca-lo, estar com ele, escutá-lo (mesmo que seu idioma seja diferente!), tentar apoiá-lo com recursos materiais, com assistência espiritual e semeando esperança em seu coração. Não nos esqueçamos do que disse Jesus: “Eu era estrangeiro e me acolheste” (Mateus 25, 35).

Terceiro, é preciso propagar, reforçar e lutar pela justiça social em relação aos estrangeiros. É verdade que os estrangeiros muitas vezes tomam nossos lugares de trabalho, ou alguns causam problemas de violência em nossas cidades e nos forçam a ter hábitos diferentes dos que estamos acostumados. Mas eles não deixaram os seus países (ou outros lugares de nosso país) para nos incomodar; eles deixaram seus lares porque foram obrigados por qualquer razão, seja perseguição política, seja violência, seja falta de trabalho ou de estudo adequado; outros emigraram para ser missionários em nossas terras. É preciso que nós, vicentinos, sejamos os primeiros a defender leis e programas que tragam um pouco de paz e felicidade para eles.

Evidentemente, justiça não significa deixar de punir um estrangeiro que se envolve com terrorismo, ou com fluxos ilícitos, como a trata de pessoas, como o contrabando, como o tráfico de drogas ou armas, ou como lavado de dinheiro. Não!

Mas um vicentino não pode estar de acordo com políticas ultranacionalistas discriminatórias do ser humano, seja quem seja, muito menos, aquelas políticas que punem o estrangeiro que decentemente sai de seu país por problemas de segurança e pobreza, para buscar o trabalho digno aonde ele existe.

O trabalho com os estrangeiros às vezes apresenta alguns riscos, mas é preciso ir além dos limites que nos impõe a sociedade. O trabalho com os estrangeiros é difícil, mas quanto mais difícil for o projeto, mais inovação exige de nós. Se o problema fosse fácil, não precisaria de um vicentino para resolver. São Vicente nos diz claramente que “a caridade é inventiva ao infinito”! Por isso, não se cansava de criar obras e projetos inovadores.

A oração, a experiência com os pobres e a luta pela justiça faziam com que ele não tivesse medo de arriscar. Por isso criou um sem-número de obras, entre elas: a evangelização dos campos; os seminários de formação do clero; o cuidado maternal e espiritual dos condenados às galeras e dos presos; a assistência espiritual às tropas e os cuidados prestados aos feridos; os lares para crianças abandonadas e as escolas primárias para os filhos dos Pobres; a atenção aos doentes a domicílio; os auxílios espirituais e materiais aos escravos cristãos na África do Norte; a assistência espiritual aos cristãos perseguidos; a abertura de missões na Polônia, na Itália, e em Madagascar.

Ele não tinha medo de criar, inovar, fazer diferente, e arriscar por seus projetos: era um empreendedor da caridade! De fato, Vicente foi declarado como o Patrono Universal de todas as obras de caridade. Por curiosidade, esta proclamação foi feita pelo Papa Leão XIII, em homenagem aos 50 anos da fundação da SSVP.

Por isso, quando criarmos um projeto de caridade, devemos fazê-lo com inteligência, inovação e sem medo! Assim faria São Vicente hoje!

Na era digital, existem tantas tecnologias que poderiam ser utilizadas para melhorar nossos projetos! Falamos tanto sobre drones, sobre inteligência artificial, sobre economia colaborativa, sobre big data, sobre impressão 3D.

Não é possível que, com tanta tecnologia exponencial, não sejamos capazes de identificar soluções inovadoras para reduzir o flagelo da migração, nós que conhecemos o problema na fonte, na sua raiz.

Existem muitas soluções tecnológicas já utilizadas. A UNICEF criou um programa de educação por computador para refugiados ensinando a construir computadores. Existem várias aplicações para telefones inteligentes de apoio a imigrantes não-documentados. Existe uma linha de pesquisa muito séria sobre o tratamento psicológico de imigrantes, inclusive com tecnologias de apoio à distância (ou remoto). A tecnologia permite quase tudo hoje em dia!

Como Família Vicentina, podemos formar um laboratório de inovação para utilizar tecnologias exponenciais para resolver problemas de imigração, de recepção dos imigrantes etc etc etc.

Falando sobre tecnologia, me pergunto se ela tecnologia nos está levando para um mundo melhor? Muitos dizem que não, se ela for mal utilizada.

Na realidade, a tecnologia pode aumentar a distância entre pobres e ricos. 50% dos empregos existentes hoje podem deixar de existir em alguns anos: automação das fábricas, carros e caminhões sem motoristas, robôs na agricultura, impressão 3-D substituindo as pessoas no comércio. Isto pode significar o corte ou a mudança significativa de mais de 1 bilhão de empregos, com impacto direto e importante sobre os imigrantes.

O carisma vicentino nos obriga a: rezar pelos que estão perdendo seus empregos por causa da tecnologia, ir ao encontro deles e oferecer ajuda, e lutar por leis justas que os possam proteger.

Convido a nós todos então que façamos como Vicente, como Luisa de Marillac, como Ozanam e vivamos o carisma vicentino de forma diferente. Se nada mudar em nossa vida na celebração dos 400 anos do Carisma Vicentino, ou nos 20 anos de Beatificação de Ozanam (que celebramos em 22 de agosto), não vai ter valido à pena ter celebrado!

Aproveitemos estes dias aqui em Roma para que realmente nos convertamos. Que estes três dias sejam como os que passou São Paulo no caminho a Damasco, já que estamos pisando na terra que recebeu o seu corpo e o seu sangue.
Prometamos a nós mesmos que vamos nos converter, rezando pelos estrangeiros, pelos imigrantes, pelos que sofrem discriminações.

Prometamos a nós mesmos que vamos nos converter pela criatividade na evangelização dos estrangeiros. Não vamos mais tratar o Pobre como estrangeiro de nossas vidas! Não vamos ter medo do estrangeiro, mas vamos procura-lo, acolhê-lo, escutá-lo, mesmo que tenha um idioma diferente do nosso, mesmo que tenha uma religião diferente da nossa, mesmo que tenha hábitos diferentes dos nossos!

Prometamos a nós mesmos que vamos nos converter através da luta pela justiça social, na propagação da caridade e do amor pelos estrangeiros, na adoção de leis que os protejam, que os desenvolva e, quem sabe, que possibilitem a eles voltar às suas terras ou fazer de nossas terras suas também.

Não é fácil, mas Deus nos dá a missão como um presente, como um dom de transformação, em particular, quando nos fazemos estrangeiros para melhor servir os Pobres. Com eles aprendemos, porque eles são nossos mestres e senhores.

Um dia, eu estava no Haiti, depois do terremoto, em uma rua cheia de vendedoras ambulantes. Estas senhoras descem todos os dias da montanha às 4 da manhã com sua cesta de frutas para vender na rua, e para ganhar um ou dois dólares por dia. Eu descia com meu carro confortável e, em frente a mim, um caminhão, ao fazer uma manobra, passou por cima da cesta de frutas de uma senhora: era tudo o que ela tinha para sobreviver e foi totalmente amassado. Eu desci do carro e perguntei a ela se poderia ajudar, já que o caminhão foi embora sem nem sequer dar conta do que tinha feito. A resposta desta senhora foi a maior lição sobre desenvolvimento que eu já tive; ela me disse: “não se preocupe não, moço, amanhã eu começo novamente!”

Não temos o direito de nos sentir cansados! Não temos o direito de desistir! Se é tão difícil para o Pobre, por quê seria fácil para nós?

 

Documento PDFEspiritualidade Vicentina e seu desafio profético


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