É um assunto que vem sempre à ribalta, todas as vezes que se trata dos problemas da justiça, em Portugal a que se liga naturalmente a questão das prisões, mas nada que se assemelhe ao que se passava em França no século XVII, quer quanto a instalações quer quanto à aplicação da justiça. A condição em que viviam os condenados às galés era uma vergonha para a sociedade e um acicate permanente na consciência humana e cristã de França. Por isso é que o senhor Gondi, comandante geral da marinha (1), pede ao rei que nomeie um capelão geral para a marinha e este se encarregue desses aspetos humanos e religiosos que pareciam ter emigrado das prisões francesas. O Padre Vicente é o escolhido para exercer tais funções.
Para termos uma ideia do que era este submundo, cito Bourdaloue (2), célebre pregador que, uns anos mais tarde, dirigindo-se às senhoras da nobreza, pretendia despertar nelas alguma sensibilidade para o que ainda continuava a acontecer nas prisões francesas: “Descei, senhoras, a esses antros profundos, onde a justiça dos homens revela todo o seu rigor; tentai penetrar nas sombras dessas escuras habitações. Fixai os olhos e vede, se puderdes, através dessa escuridão horrível num desses miseráveis: exausto e esmagado pelo peso dos ferros que o agrilhoam. Acrescentai a todos esses tormentos do espírito, o sofrimento do corpo: por morada, uma masmorra infetada; por alimentação, um pedaço de pão grosseiro e racionado; por cama, um montão de palha” (3).
Porque era difícil encontrar assalariados devido à dureza do trabalho, os “juízes tinham-se habituado, por tudo e por nada, a condenar a uns anos de galés. E os condenados, uma vez presos aos bancos dos remadores, eram retidos além do prazo fixado pela justiça. Como não bastasse, eram tratados como animais de carga. Acorrentados aos bancos, remavam sem descanso, ao compasso do chicote que, volta e meia, lhes marcava as costas despidas” (4). Ser condenado às galés era como que fosse condenado à morte. Em caso de batalhas navais, eram eles os mais expostos aos ataques dos inimigos sendo os primeiros a morrer. Igualmente em caso de naufrágio tinham garantia de morte certa; presos por pesadas correntes de ferro, não podiam fugir nem nadar.
No Padre Vicente de Paulo, encontramos não só um acérrimo defensor, mas, sobretudo, um executor desta humanização tão desejada, sobretudo, pelas vítimas da brutalidade e das injustiças praticadas por juízes, guardas e outros oficiais da administração pública sem escrúpulos. Uma das iniciativas mais marcantes da sua vida, após a nomeação como capelão mor da marinha francesa, foi a visita demorada às cadeias para ver, com os seus próprios olhos, o que se passava. Havia três grandes concentrações de condenados: Paris, Marselha e Bordéus. A primeira é a de Paris, instância onde os condenados aguardam ordem de partida para os portos de ancoragem da marinha francesa.
A partir do que observou, o Padre Vicente põe-se em ação. Pede ao Procurador Geral, que superentendia sobre as prisões, que lhe proporcionasse um espaço mais humano, o que consegue transferindo os presos para um outro lugar mais saudável. Desperta o interesse das senhoras das Caridades de Paris por esta obra, cuja situação elas ignoravam. A Luísa de Marillac, responsável pela confraria da paróquia de São Nicolau de Chardonnet, pergunta se não seria desejável que os prisioneiros também beneficiassem das distribuições feitas aos pobres da paróquia pelas senhoras da Caridade: “pense um pouco nisto: se a sua instituição de Caridade de São Nicolau não gostaria de cuidar disso, pelo menos por algum tempo” (5). E como as senhoras tinham repugnância em entrar nestes tugúrios, escuros, nojentos onde jaziam estendidos no chão os presos, acorrentados dois a dois a vociferar revolta e raiva, o Padre Vicente tem a ideia ousada de sugerir a Luísa de Marillac que poderia ser uma atividade para as suas jovens Filhas da Caridade de onde “resultaria louvor a Deus e dignificação da condição humana” (3). Depois de Paris, faz a mesma visita a Marselha e Bordéus onde encontra o mesmo espetáculo, agravado com aqueles que, tinham chegado do mar, doentes, feridos e, agora, abandonados nessas enxovias à espera da morte, misturados com os que se preparavam para partir. Espetáculo horrível onde nada inspirava esperança.
A obra era gigantesca e, por isso, era necessário envolver o maior número de pessoas não só pela ajuda, mas também pela consciência cívica que era preciso criar e desenvolver à volta deste fenómeno horrível. E começam a chegar donativos. Era necessário alguém que assumisse a responsabilidade da gestão deste trabalho. Apresenta a proposta a Luísa de Marillac: confiar à Filhas da Caridade um serviço permanente nas prisões dos condenados às galés. E o Padre Vicente termina: “porque sei que é um trabalho difícil é que tenho a ousadia do lho apresentar a si” (4).
Mas isto de mandar jovens raparigas cuidar de presos feridos e doentes, melhorar as condições de higiene e de alimentação, era uma lufada de ar fresco, que entrava nas prisões, embora com muitos riscos e armadilhas. Por isso, pede a Luísa que redija um regulamento sobre o funcionamento deste trabalho nas prisões. Para tal, ela vai observar, em direto, o comportamento dos presos, a reação das irmãs, as situações embaraçosas e delicadas que poderiam surgir. Durante cerca de oito anos ela acompanha as suas filhas neste trabalho, desde o confecionar comida, tratar as feridas dos doentes, distribuir as refeições, ouvir as imprecações e assistir e sofrer maus tratos.
No fim, surge um regulamento, misto de ousadia e prudência, de dedicação a uma nobre causa: “servir física e espiritualmente, tanto na saúde como na doença, os pobres prisioneiros, detidos em Paris, enquanto aguardavam o seu envio para as galés” (5). A refeição era preparada em casa, com a recomendação de Luísa de que fosse saborosa, de modo a abrir o apetite. Duas orientações importantes: de que não se permitissem desvios da alimentação, nem antes nem depois de confecionada, e de que todas as receitas e despesas fossem registadas porque era “absolutamente necessário para uma Filha da Caridade ser e parecer de boas contas” (6).
O trabalho era duro. Luísa, sempre presente, acompanhava as suas irmãs nos trabalhos e na formação para bem os desempenharem. Transportar as compras, carregar cestos de roupa, levar as panelas de casa para a prisão com a preocupação de que a comida fosse servida numa hora certa, em sinal de respeito pelos presos. Mas era sobretudo duro por causa da linguagem grosseira, da sujidade dos lugares, do aspeto desagradável dos presos com cara de revoltados, permanentemente zangados, sempre exigindo mais… Mas, apesar de tudo, “não deixam de ser membros d’Aquele que se tornou servo”. E terminava com mais esta exortação espiritual: “Não te custará muito carregar com as panelas se tiveres sempre Jesus Cristo como o destinatário do teu serviço. Se te esqueceres, ainda que por pouco tempo, da ideia de que os pobres são membros de Jesus Cristo, diminuirá, necessariamente, a delicadeza e o amor que deves sempre ter com estes nossos queridos senhores. Ao contrário, essa ideia, quando presente, fará com que não tenhas qualquer dificuldade em servi-los, respeitá-los e aliviá-los nas suas dores, sem reclamar” (7).
Mais tarde, em 1655, já com alguns anos de rodagem, fazendo uma síntese de todo este trabalho da Filhas da Caridade ao serviço dos prisioneiros, à luz da fé, o Padre Vicente exprimia-se deste modo: “Oh, minhas irmãs, que felicidade servir os pobres prisioneiros abandonados nas mãos de pessoas sem piedade. Eu vi esses pobres tratados como animais. Deus compadeceu-se deles. Manifestou a sua compaixão e bondade de dois modos: primeiro, permitiu que se comprasse uma casa para os acolher; em segundo lugar, organizou as coisas de modo que fossem servidos pelas suas próprias filhas; sim, porque dizer ‘filha da caridade’ é dizer filha de Deus” (8).
P. José Alves, CM
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(1) Filipe Manuel de Gondi, comandante da armada francesa do Mediterrâneo. O Padre Vicente de Paulo era o capelão da família e educador dos seus filhos. Após o falecimento da esposa vai ordenar-se sacerdote e entrar no Oratório.
(2) Bourdaloue, célebre pregador da corte; nos últimos anos da sua vida dedicou-se a obras de caridade e a visitar as prisões
(3) Margaret Flinton, Luísa de Marillac: Aspeto social da sua obra, p. 163.
(4) Jean Calvet, Cara Caridade: Vicente de Paulo, p. 69.
(5) San Vicente de Paúl, Obras Completas X, p. 687.
(6) San Vicente de Paúl, Obras Completas IX, p. 812.
(7) Margaret Flinton, Luísa de Marillac: Aspeto social da sua obra, p. 115.
(8) San Vicente de Paúl, Obras Completas IX, p. 749.








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