Ser comunidade

por | maio 4, 2022 | Notícias | 0 Comentários

No projeto de cooperação missionária entre a Arquidiocese de Braga (Portugal) e a Diocese de Pemba, em Moçambique, em que estou envolvida, sempre pensamos como um dos principais objetivos do projeto criar laços de comunhão entre as dioceses e aprender juntos a ser Igreja…

Desde que comecei a trabalhar em Angola, na Guiné-Bissau e em Moçambique, que o meu conceito de comunidade foi mudando. Nestes contextos, tendo obviamente muitas diferenças entre eles, a comunidade é tudo, porque o coletivo está acima do individual.

É a comunidade que expulsa quem errou, mas também é quem acolhe aquele que se arrependeu e até que foi castigado, porque é a comunidade que castiga para poder voltar a acolher quem lhe pertence. A comunidade é compassiva, mas não é branda, por isso quando ela é ameaçada pelo comportamento de um indivíduo, é preciso questionar essa pessoa. Porém, o reconhecimento e a aceitação da humanidade e do valor de cada pessoa faz com que ela seja sempre pertença da comunidade.

Tenho na memória a admiração do Demba, um amigo guineense, que nos perguntava quem cuidava dos nossos pais, ou seja, dos nossos “mais velhos” e nós tentamos explicar-lhe que eles não precisavam que os sustentassemos porque tinham trabalhado durante toda a vida e descontado para a segurança social e por isso tinham uma reforma (e nem tentámos explicar que atualmente, muitos pais ajudam os filhos, trabalhadores precários ou desempregados, com as suas reformas). Ele estranhou muito, dizendo que não percebia como é que nós não cuidávamos deles, afinal é o “normal”, é assim mesmo que tem de ser na comunidade, os mais novos têm de cuidar dos seus velhos…

Para nós também era difícil de perceber porque é que o Samba, nosso colega de trabalho guineense, que ganhava cerca de 10 vezes mais que o salário médio na Guiné-Bissau, chegava a meio do mês e pedia dinheiro adiantado do mês seguinte, pois já tinha gasto todo o daquele mês – ou seja, tinha emprestado a toda a família, afinal se ele tem, é “normal” ter de ajudar toda a família que precisa, assim é a regra da vida em comunidade. Talvez seja esta uma das razões que impede que se crie uma “classe média”, em que cada um/a cuida apenas de si e da sua família.

Entra também neste sistema a terra, a natureza, o “chão” que é sagrado porque é dos antepassados, e não propriedade de alguém que o vende ou faz dele o que quer, e por isso tem de ser cuidado – qual ecologia integral – razão pela qual, independentemente de serem católicos, muçulmanos ou de outras religiões ou crenças, todas as pessoas da comunidade têm de honrar a terra dos seus antepassados e lá fazer os ritos tradicionais. Então temos uma comunidade que acolhe e cuida do indivíduo, coletivo e também da terra que a acolhe.

Nesta comunidade, as decisões são tomadas depois de muito “sentar”, de muito silêncio, de muita reflexão e de muita escuta. Esta comunidade aproxima-se da filosofia, agora bastante disseminada nas escolas e em vários projetos, que é o Ubuntu. Nós existimos devido à nossa conexão à comunidade humana. Eu sou alguém através dos outros. O espírito do Ubuntu está contido na palavra “Comunidade”.

No projeto de cooperação missionária entre a Arquidiocese de Braga e a Diocese de Pemba, em Moçambique, em que estou envolvida, sempre pensamos como um dos principais objetivos do projeto criar laços de comunhão entre as dioceses e aprender juntos a ser Igreja, ou seja, questionarmos o que é que uma Igreja antiga e eclesial como a de Braga pode aprender com uma Igreja jovem e ministerial como a de Pemba. Temos tanto a aprender! O Papa Francisco convida-nos a ser uma Igreja sinodal e convidar outras pessoas para o ponto de encontro, em que todos se devem ouvir uns os outros. Então, cada um deve falar. E isso significa envolver-se num processo de oração, escuta e reflexão. Não será isto que já fazem as comunidades que referi anteriormente?

Somos convidados, neste processo sinodal, a refletir sobre a comunhão, a participação e a missão. Dizem-nos os guiões orientadores:

Sobre a comunhão: “Pela sua graciosa vontade, Deus reúne-nos como povos diversos de uma só fé, através da aliança que oferece ao seu povo. A comunhão que partilhamos encontra as suas raízes mais profundas no amor e na unidade da Trindade.”

Terá esta comunhão alguma relação com este conceito de interdependência que une os irmãos de uma comunidade?

Sobre a participação: “Um chamamento ao envolvimento de todos os que pertencem ao Povo de Deus – leigos, consagrados e ministros ordenados – para se empenharem no exercício de uma escuta profunda e respeitosa uns dos outros.”
Precisaremos nós de aprender a sentarmo-nos e a escutar a Deus e aos nossos irmãos com os que vivem verdadeiramente em comunidade?

Sobre a missão: “A Igreja existe para evangelizar. Nunca podemos estar centrados em nós mesmos. A nossa missão é testemunhar o amor de Deus no meio de toda a família humana. Este Processo Sinodal tem uma dimensão profundamente missionária.”

Teremos nós de percebermo-nos (muito) mais através do(s) outro(s)?

“Cristo, fazei-nos tomar parte na comunidade”. Esta era a resposta às preces deste fim-de-semana na Eucaristia em que participei na minha comunidade. Muito mais do que “tomar parte na comunidade”, gostava mesmo era de “ser comunidade”.

Sara Poças
Fonte: https://www.padresvicentinos.net/

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